quarta-feira, outubro 27, 2004

Aula


Sophie Boutellier



Prédio da Letras, USP. Os alunos entram na sala. Conforme se acomodam, notam a professora Vera sentada sobre a mesa, quieta. Atrás, na lousa, está escrito: Mrs. Dalloway, Virginia Woolf. São sete e meia da noite. A aula está para começar. Um grupo conversa baixinho no fundo. Alguém comenta um filme, outro diz que não é o mesmo livro, a garota questiona. A professora não se move. Os minutos passam, alguns alunos começam a ficar inquietos. Então, Vera levanta um dedo. Silêncio.

- Apenas uma pergunta. – começa Vera.- Tenho uma pergunta para vocês. Por que alguém se mata?

Um rumor percorre a sala. Todos avaliam o que poderia ser respondido. Uma timidez inicial. Alguns segundos de hesitação. Uma garota, na primeira fileira, vestida com uma saia longa e camisa fechada até o colarinho, arrisca:

- Covardia.

A professora a olha longamente. Parece avaliar o aspecto da moça.

- Resposta típica religiosa.

Um outro braço levanta. Um homem de óculos e aparencia severa.

- Desespero. Depressão.

- Resposta da psicanálise.

Uma garota bonitinha, com blusa cor de rosa:

- Amor não correspondido.

- Resposta romântica. Podemos ficar aqui a noite toda. Cada um terá uma idéia própria e nenhuma delas será certa ou errada. O suicídio é tão antigo quanto o homem e mais misterioso que Deus. Quem aqui nunca cogitou se matar é um imbecil. A vida é cansativa, difícil e repleta de doenças. Nunca é um único fator, apesar de existirem gatilhos. Virginia Woolf se matou. A mente romântica diz que foi por sua sensibilidade de escritora, o psicólogo que era bipolar e assim vai. A verdade é que pouco importa. É claro que sua personalidade influi no texto, mas o texto é um todo sem ela. Sobreviveu a sua morte. Eu, pessoalmente, me identifico com a escritora.

Uma pausa. A professora fecha os olhos. Alunos anotam as informações. A moça religiosa reclama, diz que não é imbecil. Vera abre os olhos.

- Alguns de vocês devem ter assistido o filme “As Horas”. Esse foi baseado num livro homônimo que utiliza Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf para amarrar suas protagonistas. Uma delas é a própria escritora. Nesse semestre utilizaremos o livro Mrs. Dalloway para discutir o romance de língua inglesa do começo do século XX.

- Professora, ela não foi o único escritor que se matou nessa época, não é?

- Não, não foi. Virginia Woolf colocou uma pedra no casaco e se afogou. Outros usaram balas, remédios, etc. Eu, se fosse cometer suicídio, daria um tiro no céu da boca. Mas, voltando a autora. Ela era uma mulher brilhante. Enquanto escrevia mantinha-se agíl, exaltada, quase feliz. Depois de terminar um livro, sua doença voltava. Dores de cabeça, vozes, cansaço. Penso na dor do sossego. Seu exílio forçado de Londres. Acho que ela compreendia a vida e deu tudo que queria ao mundo, mas esse não retribuiu. Não da forma correta para o caráter dela. Uma pessoa pode amar a vida e se matar. É isso que acho que aconteceu. Ao lerem seus livros percebemos uma visão bela e aguda do mundo. Suas construções de paisagens, sua liguagem intimista e assustadoramente próxima de como pensamos.

- Professora – interrompeu um garoto de camiseta colada e calça bem cortada – se ela amava a vida e podia transformá-la em algo tão incrível, por que se matou?

- Por que a vida, mesmo bela, cansa.

O olhar de Vera tornou-se vago. Parecia ter perdido-se dentro dos caminhos tortuosos e cheios de cores do pensamento e das letras. De súbito, sua atenção retornou.

- Quero que tentem não pensar no suicídio da autora ao lerem esse livro. Originalmente, deveria chamar-se “As Horas”, como no romance que originou o filme. Mrs. Dallaway relata um dia na vida desta. Um dia com todo o significado da vida desta. Conforme levantarmos aspectos técnicos de estilo, vocês escolherão um para seu ensaio final. Classe dispensada.

Os alunos guardam os cadernos, arrumam bolsas e mochilas, levantam falando da aula ou bobagens quaisquer e saem. Vera desce da mesa e começa a organizar suas coisas. Provavelmete nunca fez isso com tanto esmero. A sala está quase silenciosa, apenas algumas vozes, já no corredor, entram pela porta. Então, ela nota um aluno ao seu lado. Ele espera pacientemente que ela guarde umas folhas na pasta e sorri. A professora nota que ele nunca fala em aula, mas parece estar sempre com olhos brilhantes, absorvendo cada gota de informação.

- Desculpe professora, mas se você não quer que pensemos em suicídio enquanto lemos Mrs. Dalloway, por que falou sobre isso a aula toda?

Vera o encara. Percebe pela expressão do jovem que ele não quer ser impertinente, está apenas intrigado. Por um momento pergunta se ele percebeu, mas afasta a idéia. Ela solta um longo suspiro, sorri e responde:

- Vá pra casa. É tarde.

- Está bem. Até amanhã.

- Adeus.

O jovem aluno entra no prédio. Uma estranha agitação percorre os corredores. A FFLCH está sempre agitada, porém não daquela forma. Ele lembra do começo de Mrs. Dalloway. Será um carro da família real, brinca consigo mesmo. Se dirige para a sala 170. O ar está pesado, pessoas conversam baixinho nos corredores. Na frente da sala, uma multidão silenciosa. Ele pergunta:

- O que houve? A sala está trancada?

A garota de cabelos verdes aponta um cartaz. A USP oferece um memorial a falecida professora Vera Morales. A garota completa:

- Suicídio, ontem à noite. Um tiro na boca.




domingo, outubro 17, 2004

Os Pilares


Gárgula


Ele nunca tinha visto um lugar como aquele. A imensidão fazia com que se sentisse insignificante. Grandes pilares com nervuras e rendilhados subiam a sua volta para formarem arcos leves e abóbadas quase celestiais. Algo como um esqueleto enfeitado segurava paredes brancas como mármore carrara e grandes vitrais coloridos filtravam a luz. O ar parecia feito de pó mágico dourado. Tudo era lúcido e desenvolto, desde a disposição dos pórticos até o rendilhado do tifório. Do lado de fora, gárgulas, frisos e esculturas santas protegiam o maravilhoso edifício. “Então, aquilo era uma catedral”. Pensou encantado Rafael.

Poderia ficar horas passeando e admirando o lugar. O silêncio o enchia de paz. Era como uma melodia, composta por homens, mas de natureza celeste. Ele quase acreditava em Deus, sentado ali e observando. O lugar estava deserto. Havia um vigia na entrada, porém nenhuma alma viva, além dele, dentro da catedral. Rafael inspirou profundamente e expirou todo o tormento de sua vida. Sua mente vagou por vitrais e arcos, sem se apegar a nada.
Um som de passos ecoou pelo claustro. Firmes, decididos e indiferentes ao espetáculo arquitetônico a sua volta. Rafael sabia quem era. Só uma pessoa conseguia ignorar uma obra de arte daquelas.
-Olá, Ana! – sussurrou Rafael.
-Ah! Ai está você. – ela respondeu no tom normal de voz.- Vamos? Quero tomar um banho antes do jantar.
-Vamos. – disse Rafael desanimado. Ana sempre o puxava para a realidade. Não que esta fosse ruim, mas era atribulada. Ele a amava, mesmo tão realista, tão pouco criativa. Podia sonhar pelos dois. Talvez fosse por isso que estavam com problemas agora.
Ele se levantou e caminhou ao lado dela até o carro. Antes de entrar deu uma última olhada para a igreja.
-Você está bem? – indagou Ana.
-Estou. Esse lugar é tão calmo, não?
-Calmo demais! Tem certeza que não é aquilo que o está incomodando?
-Não, não tenho. Você sabe o que eu sinto sobre esse assunto.
-Sei. Contudo não é um bom momento.
-Para falar sobre isso ou para isso?
-Os dois.
Não disseram mais nada até o hotel. Tinham trabalhado o ano todo para juntar dinheiro para a viagem e, agora, um clima pesado os acompanhavam pelas diversas aldeias, cidades e castelos que conheciam. Eles se arrumaram e perguntaram para a recepcionista por um bom restaurante. O jantar transcorreu sem problemas. Falaram dos lugares que viram, dos lugares que iriam conhecer nos dias seguintes e evitaram a todo custo falar do assunto que dominava suas mentes. Por fim, Rafael não agüentou.
-Precisamos conversar.
-Eu sei.- respondeu Ana, cabisbaixa.
-Por que não pensa na idéia?
-Só falta você falar que as montanhas parecem elefantes brancos!
-Sim, mas estamos com papéis invertidos e isso não é um conto do Hemingway.
-Rafa, você sabia que eu não queria filhos quando casou comigo. Achei que você não quisesse.
-Eu não queria, mas agora quero. Pensei que você mudaria de idéia com o tempo.
-Todo mundo pensa isso. Não sei. Minha carreira. O orçamento, a responsabilidade. Não sou muito maternal, você sabe.
-Não precisa. Temos condições de criar uma criança e posso me dedicar bastante. Trabalho em casa. Posso adaptar meus horários. Você não precisará abrir mão de nada.
-Mas isso muda tudo. Um filho vai alterar nossa vida completamente. Está tão bom do jeito que está.
-Não, não está.
-Por que você quer tanto?
-Não ria.
-Não vou.
-Porque eu te amo. Porque quero um fruto desse amor.
-Não sei. Me deixe pensar no assunto. Não é fácil repensar anos assim.
-Eu sei. Desculpe.
-O que faremos?
-Não sei.
-Nos separar, se eu não quiser ter filhos?
-Não. Eu te amo. Não quero viver sem você. Mas...
-É.
Ficaram em silêncio. Não era o mesmo silêncio que Rafael experimentara na catedral. Esse era tenso, cheio de reflexões e conseqüências. A conta veio. Pagaram e levantaram.
Meses depois, em casa, Rafael pensava naquele dia. A decisão não vinha. O que faria? Deixar a mulher que amava por que seus caminhos e desejos tomaram rumos opostos? Ou abrir mão do que mais queria? Olhou para a tela do computador. Pensaria nisso amanhã. Todavia, dizia isso todos os dias. Adiando o inevitável.
Ana chegou. Estava cansada, mas bela como sempre. Trocaram olhares. Então ela o beijou e disse:
-Eu entendo!

sábado, outubro 09, 2004

Folhas Suspensas

Um passo, mais um, seguido de outro e mais outro... um passo rangido rachando o silêncio. No sono profundo e lúgubre da madrugada, um passo saindo de uma tábua solta do assoalho. A lua projeta uma sombra, luz branca sobre o caminhar. Com um impulso o silêncio é quebrado. O Gato pulou na janela e cantou ao orvalho.

A casa não respondeu. O vento preencheu a solidão e aves noturnas medrosamente assustavam. Do parapeito via-se o fora de dentro e o interior de fora. Indefinido lugar numa vida definitivamente sozinha. Uma casa construída no ermo. A imagem do horizonte longínqüo, apenas com sombras de árvores. O azul quase negro da madrugada encontrando o solo. Um lugar parado no tempo, fora do tempo. O Gato já estava com 12 anos humanos e pouco contato tivera com estes. Apenas aquela casa secular lhe fizera companhia e agora perdia pedaços a cada dia. Era uma construção imponente. Apesar do efeito dos anos, ainda conservava uma aura de elegância. Como a casa de campo de um czar russo, majestoso porém decadente. A diferença é que a casa de um czar seria um patrimônio conservado. Esta era a casa mais importante nas redondezas de uma cidade fantasma. Tudo rangia, afugentava, quebrava sem ninguém, além do Gato, para ouvir. O felino deslizava por seus salões, quartos, escadas e parapeitos, todos os três andares do casarão feitos como que para ele. Assim, o que fazia era diferenciado pela estrela sobre sua cabeça. Sob o Sol lentamente pensava em folhas suspensas no ar, existindo como pássaros, só por alguns segundos. À noite, sob estrelas frias e distantes, passeava sentindo arrepios ao sopro gélido do vento sul .

Nem sempre fora sozinho. O único contato com pessoas, sua senhora dona, morrera há quatro estações. Mas, mesmo ela, tinha uma presença solisilenciosa. Seguia uma rotina sem sobressaltos ou visitas. Acordava com a aurora, passava a manhã cuidando do jardim e depois do almoço adormecia na rede da varanda. No final da tarde sentava-se para observar o pôr-do-sol e lia na sala principal à noite. No dia seguinte recomeçava. Só se dirigia ao Gato para um carinho ocasional. Não o alimentava. Ele sempre caçara sua comida. Viviam vidas paralelas preenchendo a solidão do outro com um silêncio solidário.

Numa tarde, aquela tarde que precede a noite de lua cheia, um som se fez ao vento. O rugido superava seus miados. Uma imagem distorcida no calor sobre o asfalto definia-se na estrada da mansão. Um ser enorme e barulhento vomitava pessoas no jardim, adormecia e..., horror! Aquelas pessoas afastavam-se do bicho metálico e entravam na velha casa. Agiam como donos, mudavam móveis de lugar, batiam lençóis e instalavam-se.

O Sol, solidário, aproximava-se do chão e espiava pela janela o Gato a chorar. As coisas da senhora dona mexidas. Sua casa mudada, infestada de cheiros estranhos. O Sol se escondeu. Há muito tempo não acendiam-se luzes à noite. As pessoas ficaram. Conversaram, comeram e fizeram planos de mudança. Agora que dormiam, o Gato no parapeito decidira-se. Sua dona partira e ele ficara enquanto a vida foi a mesma. Contudo aquelas pessoas não pareciam estar de passagem. Eram barulhentos jovens sem paz de espírito. Numa única noite já destruíram seu passado, numa única visita inseriram a casa nas engrenagens do tempo.

Olhou para dentro, a lembrança das folhas suspensas, da senhora lendo enquanto acariciava seu pêlo, da vida correndo num tempo estático. Levando as últimas lembranças o Gato partiu. Num salto que definiu sua vida.


quarta-feira, setembro 22, 2004

Frio


Campos

Pinheiros contra o céu. O vento gelado carrega nuvens brancas e raios dourados atravessam as árvores, tocando gentilmente a pele dela, tentando inutilmente aquecê-la, num gesto de compaixão e beleza. Thaís caminha pelo bosque sozinha. Pensando em tempos passados nos quais aquela cidade nada mais era que uma estação de tratamento de tuberculose. Ela pensa em alugar um cavalo. Galopar pelas montanhas sozinha. Rodrigo partiu. Eles sempre partem. De alguma forma, ela sabe que deveria estar mais triste. Talvez o frio a faça economizar emoções.
Thaís resolvera ficar um dia a mais que os amigos. Espairecer, disse a eles. O que ela queria era se livrar das pessoas. Caminhando na direção dos cavalos, ela nota um pequeno gato preto sobre a cerca. O felino caminha com elegância e agilidade, como se não notasse a dificuldade das manobras. Queria ser um gato, pensa a moça. O olhar do gato responde: talvez seja! Thaís ri internamente. Nos lábios apenas um singelo sorriso transparece. O garoto dos cavalos pergunta se ela deseja um cavalo bem manso. Não, responde a garota, um que galope bem. Ele aponta para um garanhão dourado. Ela paga por duas horas. O menino olha espantado e pergunta se ela precisa de dicas de lugares. Não, responde Thaís montando no cavalo.
Ela envereda para as montanhas, seguindo uma velha estrada de terra, rápida, o vento forte no rosto, o movimento ritmado do animal e a liberdade do momento. Já faz muitos anos que ela fez aquele caminho. Contudo, conhece-o por instinto e ninguém costuma usá-lo. A primeira parte do trajeto é uma reta em campo quase aberto. Os únicos sons são os dos cascos batendo no chão e dos pássaros. O caminho começa a inclinar, subindo levemente, não é preciso diminuir a velocidade, não ainda. Sua mente viaja mais rápido e Thaís pensa em quanta beleza o mundo guarda, belezas tão fortes, tão intensas que provocam dor no seu intimo.
Quando Rodrigo e os outros partiram, ele a perguntou se ela estava bem, se ela compreendia. Sim, ela compreendia e agora estava livre. Eles fingiram entender seus motivos para ficar, uma amiga se ofereceu para acompanha-la. Thaís recusou. Precisava daquela solidão. A mata fechava-se sobre a garota, o sol escondido sobre as folhas. Ela sentiu-se distante, não fisicamente, mas emocionalmente. Uma pessoa deslocada, sem ligações reais com o mundo. E se ela caísse do cavalo, se morresse naquele instante, será que seria tão ruim? Ela desejou que acontecesse. Contudo, não desejou a ponto de provocar. Estava apenas cansada da vida. Sabia que passaria, que reconstruiria sua vida e ainda tinha objetivos. Eles teriam de ser seu rumo, objetivos, não pessoas ou prazer de viver. De alguma forma, ela gostava do mundo, da vida, podia ver e sentir sua beleza, mas se não conseguisse transformar o que sabia em algo concreto, não conseguiria espantar aquele desejo mórbido. Também sabia que precisava de ligações mais intensas com as pessoas, mas já não sabia como criá-las. Existiam pessoas que ela amava e que estavam em sua alma, mas ela acreditava que entenderiam se não agüentasse mais.
Agora, a estrada virara uma trilha entre árvores e Thaís já podia ouvir o barulho da água caindo. Trotando, ela entrou numa clareira e lá estava, uma grande cachoeira, a água prateada caindo sobre um enorme fosso azul escuro. Reflexos dourados na superfície criavam a impressão de um poço de jóias. Trepadeiras verde-vivo caiam pelas árvores inclinadas sobre a água. As pedras formavam desenhos diferentes para cada olhar. Alguns viam escadarias, outros torres, ela via apenas beleza pura. Desmontou do animal e deixou-lhe beber daquela água gélida e clara. Thaís caminhou até uma das rochas que proporcionava uma visão perfeita do lugar. Sentada, apenas respirando aquele ar puro e com odor de pinheiros, Thaís sentiu-se viva como nunca antes. Um espetáculo natural com uma vida própria a rejuvenescia.
O amor que sentia pelo mundo era tão imenso, mesmo assim, suas ligações tão poucas. Rodrigo não passara de uma tentativa de envolver-se com a vida, uma vontade de normalizar sua pessoa, quando isso teria sido tão prejudicial. Thaís percebia agora que sua grande virtude era exatamente esse deslocamento. Ele lhe dava a capacidade de apreciar o mundo e representar suas belezas, de pensar e criar algo próprio. Também lhe dava a capacidade de entender as pessoas e tocá-las sem se contaminar, sem tornar-se parcial demais. De amá-las como um todo e ter esperanças, dar esperanças e ajudar. Não fazer parte lhe dava um papel no mundo e um impulso para continuar.
Thaís levantou-se, montou no cavalo e continuou subindo. O entardecer aproximava-se. No cume da montanha, ela parou e olhou. Observou com olhos de escritora, daquela que representa, toca e ensina, mas não daquele que vive cotidianamente. A esfera vermelho-sangue, a neblina a sua volta e picos esbranquiçados com suas araucárias saudando um céu colorido e quase ou sempre divino. Como uma miragem num deserto frio, o círculo que propicia a vida desaparece num vermelho irreal, quase obra de artifices tecnológicos. Numa piscina de fogo líquido, ele se despede deixando-nos o vento cortante e impiedoso. A lua crescente nos saúda, anunciando a noite de seres gélidos. Sob a luz prateada, Thaís desceu a montanha e voltou a viver.

domingo, setembro 05, 2004

Duplo


atget_austrian

Levei muitos anos para tomar coragem e contar essa história. Ricardo era um grande amigo e o que aconteceu com ele nunca fez muito sentido. Porém, o que faz sentido nessa vida? Para os que ficam, nem a morte. Fatos estranhos ocorreram naqueles dias e ainda me assusto quando conheço gêmeos. Mas estou colocando o carro na frente dos bois. Não estou aqui para filosofar sobre a vida e sim contar os últimos dias de meu amigo.

Estávamos no fim do verão. Logo que voltei das férias fui visitá-lo. Ele morava num apartamento em Higienópolis, um bairro de classe média-alta de São Paulo. O prédio, muito antigo, estava bem conservado. O apartamento era amplo e extremamente organizado. Essa era a maior característica de Ricardo. Perfeccionista ao extremo, com mania de limpeza e planejamento, tudo na sua vida refletia seu modo de ser. Móveis brancos e modernos. Boa utilização do espaço. O perfeito arquiteto bem-sucedido. Contudo, sempre achei que faltava personalidade na sua casa.

Ele me recebeu com uma taça de vinho branco. Ricardo tinha uma ótima adega de vinho branco. Assim que começamos a conversar, percebi que havia algo errado. Ele riu, descoversou e por fim me contou.

- Não é nada demais – falou sorrindo – apenas algumas peças que minha mente anda pregando. Acho que trabalhei tanto nesse verão que o estresse afetou minha visão. Tenho visto algumas coisas duplicadas.

- Como assim?

- Ah, começou semana passada. Saí para o escritório e duas senhoras, iguaizinhas, atravessaram a rua. Na hora não dei importância, mas no semáforo seguinte, dois homens gêmeos aguardavam na calçada. Quando cheguei ao escritório, duas garotinhas idênticas brincavam de amarelinha na rua.

- Foi apenas coincidência.

- Foi o que achei. Só que fiz a bobagem de comentar com o pessoal do trabalho. Agora, todo dia há algo duplicado na minha sala. Começou com o grampeador. Ontem, eles conseguiram duplicar meu Mondrian.

- Não é difícil conseguir uma cópia de um Mondrian. Desencana, logo eles cansam de brincar.

Continuamos conversando e rindo do que mais os colegas de Ricardo poderiam duplicar. Contudo, o semblante dele estava pesado. Disse para mim mesmo que era excesso de trabalho e combinamos de almoçar dali a três dias.

No dia combinado, Ricardo apareceu no restaurante atrasado. Não era do seu feitio perder a hora. Sua aparência cansada me assustou e sugeri que precisava de umas férias. Ele me contou que não era o trabalho que o estava atormentando e sim a estranha duplicação das coisas. Dessa vez não poderia ser alguém do escritório. Seu computador fôra duplicado. Ninguém gastaria tanto dinheiro para pregar uma peça. Ou se daria ao trabalho de copiar tudo que havia num para o outro. Tentando animá-lo, comentei:

-Não reclame. Agora você tem dois computadores. São apenas objetos.

- Não, não são. Olhe em volta.

Passei os olhos pelo salão do restaurante. Para meu espanto, havia pelo menos quatro pares de gêmeos em outras mesas. Foi assustador. Contudo, me controlei e tentei avaliar a situação. São Paulo era uma cidade enorme e estranha. Nós nos acostumamos com pessoas diferentes ou situações peculiares. Provavelmente passavamos por gêmeos o tempo todo, apenas deixamos de notar. Tentei convencê-lo disso, mas Ricardo estava irredutível. Acreditava piamente que o universo estava brincando com sua mente.

- Não é só aqui. A secretária do meu chefe tem uma irmã gêmea trabalhando na recepção. – Ele completou.

- Isso é normal. Ela conseguiu que a irmã fosse admitida. Afinal, ela é a secretária do chefe, não?

- E como você explica os dois vasos idênticos na minha casa hoje de manhã?

- Essa é fácil. A Val deve ter comprado.

Valéria era a namorada do Ricardo há dois anos. Tinha a chave do apartamento e vivia reclamando que faltavam objetos de decoração lá. Era a cara dela simplesmente comprar algo e colocar na sala, sem perguntar. Ricardo balançou a cabeça e começou a comer desanimado. Ao olhar o prato dele, quase tive um enfarto. Todos os alimentos, até o grelhado, vieram em duplas. Quando apontei, ele resmungou que já fazia dois dias que isso acontecia e continuou a comer.

Nos dias que se seguiram tentei reparar mais no mundo ao meu redor. Procurava gêmeos ou objetos duplicados em toda parte. Contudo, era raro ver duas pessoas iguais juntas. Comi no mesmo restaurante o resto da semana e em nenhum dia vi pessoas ou pratos duplicados. Cheguei a pedir o mesmo grelhado que Ricardo duas vezes. E sempre vinha a quantidade normal de comida. Ora, será que aquilo só acontecia com ele? Por quê? Resolvi telefonar e descobrir como ele estava. A secretária eletrônica atendeu e a mensagem tocou duas vezes. Depois de dois sinais pude deixar meu recado. Naquela noite, Ricardo me telefonou. Pediu que fosse até sua casa para conversar. Mal cheguei e ele me interrogou:

-Você está brincando comigo? Por que deixou dois recados iguais na secretária?

- Não deixei!

Ele soltou um longo suspiro e me convidou a entrar. Os porta-retratos, vasos, livros, CDs, mesmo os móveis, estavam todos duplicados. Nos sentamos e começou a falar. Sua vida estava um inferno. Tudo e todos apareciam aos pares. Não podia explicar e aquilo o enlouquecia. Observei o apartamento. Continuava organizado e o excesso de objetos não alterava o efeito de amplidão e limpeza. Na verdade, a área do lugar parecia ter aumentado para compensar as aparições. Ricardo concordou. Disse que medira a sala e esta dobrara de tamanho.

- Isso não é tão ruim! – tentei brincar. O que eu estava pensando? Dexei-me levar pela loucura do impossível. Porém, Ricardo estava em frangalhos. Sua teoria de duplicação não era acurada, como me mostrou. Não apareciam apenas cópias das coisas, mas réplicas espelhadas.

- Os gêmeos que conheci nos últimos dias têm personalidades opostas, um é destro, outro canhoto e assim por diante. Olhe para os retratos. São cópias espelhadas. É alguma mensagem.

- Ora, não exagere, Ricardo. São apenas acontecimentos estranhos. Algo fora de sincronia. Por que diabo o universo teria uma mensagem apenas para você?

- Não sei. Talvez eu não seja o único. Minha vida está se desfazendo.

Nesse momento, um barulho de chaves interrompeu a conversa. Valéria entrou nervosa, vermelha, nem notou minha presença na sala. Olhou para Ricardo e começou a gritar:

- Como você pode? Dediquei dois anos da minha vida para você e me trai assim, na cara dura.

- Do que você tá falando? – perguntou Ricardo, abobado.

- Eu vi você com aquela vadia. Nem se deu ao trabalho de esconder. Você sabe que eu tomo café no Fran’s todo dia.

-Eu não fui ao café, hoje. Muito menos com uma mulher.

- Eu vi. Pare de mentir. Você estava se agarrando com ela. Nem olhou na minha cara. Obviamente passou a noite com a galinha.

- Val, querida, não era eu. Nunca faria isso com você.

- Pára com isso. Pelo menos assume o que fez. Sei lá, diz que não significou nada. Mas não mente pra mim. – lágrimas escorriam pelo rosta da jovem. Seu corpo tremia de raiva.

- Eu juro. Passei a manhã toda no escritório. Pergunte por lá.

- Desgraçado. E o que você fez com o apartamento? Não importa. Aqui está sua chave. Está tudo acabado. – disse saindo.

Ricardo não disse nada. Sentou-se e escondeu o rosto nas mãos. Naquele momento pensei que ele pudesse estar enlouquecendo. Que fazia as coisas e não lembrava. Que via coisas. Sem me despedir, voltei para casa e tentei esquecer o assunto. Durante uma semana, evitei ligar ou encontrar com ele. Tentava, desesperadamente, encontrar uma explicação para tudo que não envolvesse a sanidade mental de meu amigo. Além disso, eu mesmo vira os gêmeos no restaurante.

Então, algo aconteceu que mudou toda minha atitude. Fui ao shopping revelar um filme das férias. Estava despreocupado, passeando enquanto as fotos ficavam prontas. Na escada rolante oposta, descendente, vi Ricardo e uma moça rindo. Chamei por ele, mas não me respondeu. Dei a volta e desci atrás. Queria falar com ele, parecia bem. Todavia, quando cheguei embaixo, ele desaparecera. Resolvi passar na sua casa à noite. Lá chegando, a pessoa que abriu a porta não parecia o Ricardo que conheci. A barba mal-feita, roupão e restos de comida pelo apartamento. Seu olhar beirava o de um louco.

- O que aconteceu? – perguntei –Te vi no Pátio à tarde, você não respondeu.

- Não era eu, pra variar.

-Como assim?

- Está bem. Você é o único que me ouviu com calma até agora. Lembra da Val? Pois é. Dois dias depois fui demitido. Disseram que entrei no escritório no fim de semana e vendi todos os projetos. Ah, também dei uma festa.

-Peraí, você fez tudo isso?

-Não. Acho que não sou o único que vejo duplos. Na verdade, acho que me dupliquei. Era só o que faltava.

- Isso é loucura. Você precisa de ajuda médica.

-Já procurei ajuda. Não tenho dupla personalidade. Aliás, segundo o psiquiatra, não tenho personalidade. – Disse e desatou a rir.

Aquilo me assustou. O que quer que estivesse acontecendo o afetara. A casa duplicada não me espantava mais. Aterrorizante era o olhar de Ricardo ao dizer que o universo destruiu sua vida. Saí de lá o mais rápido possível. Não porque não me importava, eu me importava, mas porque tive medo.

O fundamento desse medo se concretizou poucos dias depois. Recebi um telefonema de madrugada. Era Ricardo:

-Ele está aqui. – e desligou.

Na hora, não entendi o que ele queria dizer. Quando pela manhã Val me ligou histérica, as coisas começaram a se encaixar. Não tenho coragem para dizer o que entendi. Não iriam acreditar. Vou apenas contar os fatos. Cada um chegue à conclusão que lhe convir.

Ricardo foi encontrado morto em seu apartamento. A perícia concluiu suicídio. Porém muitos fatos não puderam ser explicados. O tiro desferido pela arma na mão de Ricardo foi reto, para a frente dele. O tiro que o matou, também reto, veio da direção oposta. A bala na parede era exatamente igual à que estava em sua cabeça. Contudo, a arma só disparou um tiro. A bala foi o único objeto duplicado encontrado em seu apartamento. Todo o resto estava normal. O local estava trancado por dentro e o porteiro disse que Ricardo foi o único a subir, duas vezes. Não encontraram bilhete. O detalhe que utilizaram para concluir que ele se matara: um livro de Edgar Allan Poe sobre a cama, abeto no conto “A queda da casa de Usher”.

Não olho mais para o espelho.


sexta-feira, agosto 27, 2004

A Casa na Montanha


Meteora
Posted by Hello

Não me lembro mais dela todos os dias. Sua imagem está desaparecendo na minha mente. Por isso lhe escrevo, meu irmão. Não apenas para lembrar-me, mas para te lembrar porque estamos assim. A vida toma caminhos novos e, agora, tudo aquilo que passamos parece irreal. Sinto sua falta. Faz quase vinte e cinco anos que não nos falamos. Com a velhice se aproximando, não quero perder você também. Estamos maduros. Acho que aprendemos a esquecer essas brigas, não? Sofia morreu há dois meses. Ela já estava doente há algum tempo. Nos últimos dias me perguntou se eu me arrependera. Não, não me arrependi. Sei que abri mão de você, mas foram 25 anos de felicidade. Queria tanto que aceitasse.

Aquela casa ainda aparece nos meus sonhos. Lembra do dia que chegamos. Tão felizes. Nós esperamos o ano inteiro por aquelas férias merecidas. Um grupo de amigos, uma bela fazenda e a casa-grande no alto da montanha. Encontrei o Carlos outro dia. Continua alegre e irresponsável, como se ainda tivesse 20 e poucos anos. Naquele primeiro dia tudo estava perfeito. Seis amigos reunidos depois de muito trabalho. Apenas o Douglas não chegara. Por que, mesmo, que ele só viria no dia seguinte? Não me lembro. A lareira crepitava e nós cantamos a noite toda. O Marcos, sempre atirado, provocando a Paula com aquele papo de “você é a mulher mais bela do mundo”. Nós não tínhamos visto Sofia, ainda. Essa sim era bela. Foi até seu último suspiro.

A primeira vez que a vimos... Deus, parecia que o tempo parara para assisti-la. Quando Douglas saiu do carro e disse que trouxera uma amiga, eu não esperava por isso. Os amigos dele nunca foram diferentes ou muito interessantes. Então, ela apareceu. Desculpe, acho que me perdi nas lembranças. Deve ser doloroso ler uma carta de reconciliação e ter de cutucar essa velha ferida. Contudo, se não falar, talvez você não entenda minha decisão. Se conseguir lembrar da pessoa que ela era, quem sabe me perdoe.

Ela nos cumprimentou normalmente. Pensei comigo, é apenas bonita. Foi ao resolver conhecer a fazenda, que vimos como era incrível. Qualquer outro teria dado uma volta e só. Ela corria, livre, pelo campo. E a árvore? Aquela árvore centenária, enorme. Simplesmente subiu e ficou balançando lá em cima. Parecia uma criança e, do nada, parou. Como se um pensamento metafísico ocorresse em sua mente. Olhava o horizonte com seus olhos verdes. Quando desceu, virou-se para nós e disse:

-Isso é o que sou.

Não entendi nada. O que ela queria dizer com isso. Que era infantil? Livre? Não, depois percebemos que era imprevisível e profunda. Capaz de fazer coisas malucas e emprestar significado para as coisas mais bobas. Você ficou embasbacado por ela desde o primeiro minuto. Como era mesmo que dizia? Que quando o amor nos atinge forte, tudo que podemos fazer é correr atrás. Foi o que você fez. Sempre puxando conversa e a acompanhando nos passeios. Exceto os à cavalo. Ainda tem medo de montar? Lembro quando éramos crianças e mamãe nos colocou para fazer equitação. No prineiro dia você estava mais excitado que eu. Uma pena aquele acidente. Não foi sua culpa. Assim, como não foi minha, eu e Sofia nos entendermos tão bem.

No dia seguinte choveu. Que tempestade! Para mim, dias assim temos de ler Asterix e esperar que o céu não caia sobre nossas cabeças. E quem diria que Sofia tinha um exemplar do pequeno gaulês na bagagem? Nós três conversamos por horas. Quando a chuva passou e todos saíram, nem notamos. Ficamos inseparáveis. Então, você me pediu para deixá-los a sós. Confidenciou que estava interessado nela. Como se eu não tivesse percebido. Você não é exatamente discreto quando apaixonado. Soube que se casou poucos anos depois. Ao contrário de mim, você sempre quis uma família grande, muitos filhos, almoço de domingo. Como vão seus filhos? De vez em quando mamãe me conta sobre o que acontece com vocês.

Eu juro que tentei atender seu pedido. Durante duas semanas, eu só me aproximava de você e Sofia com a turma toda. Os únicos momentos em que isso não ocorria eram nas cavalgadas. Além de mim, ninguém queria montar. Sei que acha que eu enchia a cabeça dela com coisas ruins sobre você. Mas nunca disse nada de mal, Thiago. Era cavalgadas normais. Ela estava sempre alegre, um bom-humor raro. Nos acostumamos a ir até o lago, contorná-lo e, na volta, parar sob a árvore. Falávamos de tudo. Gostaria de saber quando percebi que também me apaixonara? Um dia, acho que o sétimo ou oitavo, não sei direito, nos sentamos na sombra. Vocês todos estavam no lago. Podíamos ouvir a Paula gritar com o Marcos. De repente, Sofia me perguntou se eu sabia o que era amar. Respondi que o único amor que conhecia era o que tinha pela arte. Então, ela começou a descrever o que era o amor.

O surpreendente é que não era aquela avalanche de clichês que a maior parte das pessoas usa. Segundo ela, era algo mais complexo, que exigia não apenas paciência, mas estudo. Algo como o que eu sentia sobre minha arte. Você se interessa pela outra pessoa, gasta seu tempo conhecendo-a e ainda mais tempo tentando desenvolver um elo. Contudo, não é um desperdício. O resultado é uma obra que para o autor nunca está perfeita, sempre precisa de retoques, mudanças e revisões. Mas o importante é que existe, tomou forma. Eu disse que era o que sentia pelas minhas obras. E ela disse:

-Você ainda vai sentir isso por alguém.

Nesse momento corei. Olhei para o lago e sugeri que nos juntássemos aos outros. Quando chegamos, só faltou você pular. Uma alegria que transbordava. Isso me incomodou mais ainda. Sentei com o Carlos e o Douglas e tentei não pensar nisso. O palhaço do Carlos estava contando suas façanhas e rindo de si mesmo. Adorava isso nele. Ninguém tinha capacidade de rir de si como ele. Logo entrei na conversa e esqueci. Começamos a fazer apostas se a Paula ia ou não dormir com o Marcos até o fim da viagem. Se não me engano, você também entrou na aposta, depois.

Quando as conversas acalmaram, me separei do grupo. Precisava pensar. Só. Sentia uma confusão insolúvel. Eu amava Sofia. Sei que era cedo para a palavra amor e era surpreendente eu usá-la. Antes dela, meus relacionamentos não duravam um mês. Ficava de saco cheio rápido. Pense bem, não estou dizendo que a merecia mais, mas nunca tinha amado. Você, hora ou outra, estava apaixonado por alguém. Será que pode garantir que a amaria toda a vida, como eu fiz? Desculpe, é só uma forma de defesa. Tenho muito medo de que não queira me ver, que me odeie tanto. Preciso de você, Thiago. Perdi a pessoa que mais amava e sinto que essas palavras são tudo o que resta de minhas forças. Preciso colocar os problemas pra trás, me acertar com você. Quem sabe, assim, reaprendo a viver. Digo isso, pois desde aquela viagem, vivi numa espécie de sonho. Não eram perfeitos, mas os anos com ela eram sempre doces.

Não sei se percebeu, mas depois do dia da aposta, eu me afastei ainda mais. Comecei a andar com o Carlos e a Tina. Era uma boa distração. Contudo, não suficiente. A fazenda não era tão grande e estávamos em poucos. Na terceira semana, eu desisti. Então, aconteceu. Noite da pipoca. Quando o filme terminou quase todos tinham capotado. Excesso de tequila. Você me conhece, tenho resistência inumana à tequila. Bebi tanto ou mais que os outros e estava elétrica. Ninguém deu a mínima para o filme ou pra quando fui para a varanda. Sofia seguiu-me e sentou-se comigo na rede.

Não lembro as palavras, não foram muitas. Eu estava em êxtase. Meu coração batia tão forte que era ensurdecedor. Algo como “Tell-Tale Heart”, só que de felicidade. Nos beijávamos como se não pudéssemos respirar de outra forma. As roupas sendo jogadas displicentemente, meu corpo ansiando pelo dela. Quando acordei o céu estava azulando. Senti uma culpa terrível, ela percebeu. Eu disse que não poderia fazer isso com meu próprio irmão. Porém, ela disse que não faria diferença, não tinha se interessado por você. Não pude abrir mão dela. Nos mantemos em segredo por quase todo o resto da viagem.

O dia em que perdeu a aposta sobre o Marcos e a Paula, afinal eles trasaram e no ano seguinte casaram, você tomou coragem. Decidiu se declarar. Foi o dia em que nos encontrou sob a árvore, os cavalos pastando, a brisa agitava as folhas e raios de sol acariciavam a pele dela, assim como eu. Aquele dia você parou de falar comigo. Quis explicar, te convencer que não era intencional. Nunca esqueci seu olhar. Ainda tenho pesadelos com seus olhos me condenando, me odiando. Uma fúria que matou parte de mim. Por favor, repense, tente se lembrar como eu te amo. Não tenho mais motivos para viver. A minha outra parte morreu há dois meses. Me ressuscite. Como posso te pedir para me perdoar? Será que posso? Somos irmãos. Temos um passado anterior a Sofia. Agora nenhum de nós a tem. Contudo, você tem uma família. Deixe-me pelo menos conhecê-los. Depois, se quiser, eu sumo. Você nunca mais terá notícias de mim.

Espero que ao menos me responda. Nem que seja não.

Com Amor

Sara


quinta-feira, agosto 26, 2004

Retrato em P&B


evans girl in fulton street
Posted by Hello

Retrato em P & B

Bruna era considerada por todos uma garota bem comum. Era daquelas que, quando nos pedem a descrição, é tudo tão mediano que ela pode ser qualquer um e nosso ouvinte não consegue formar uma imagem. Por isso se começasse a descrevê-la fisicamente o leitor se sentiria incomodado e largaria o livro chamando-me de pouco criativo. Contudo peço um pouco de paciência de quem lê estas linhas. Simplesmente tente imaginar um rosto bem comum, num corpo bem comum, com uma personalidade pouco marcante. Coisas do tipo olhos castanhos, cabelos castanhos, estatura mediana e uma conversa que não acrescenta nada, porém não incomoda.

A vida de Bruna resumia-se entre a faculdade de jornalismo, sua casa e o bar, sempre o mesmo, no sábado. Os pais tinham proposto que não trabalhasse durante o curso pensando que assim poderia se destacar com notas melhores. Porém, suas notas nunca subiram e nem ela própria acreditava que algum dia deixaria de ser medíocre.

Durante 18 anos tinha vivido sem viver, sem notar nada no mundo que lhe provocasse alguma reação. Minto. Em algum ponto remoto de sua infância ela se lembrava de uma sensação. Sabia que tinha visto algo que há comovera e por isso optara pelo jornalismo. Ela estava procurando essa lembrança perdida, essa imagem que tinha lhe dado a fagulha de vida que a mantinha.

Numa manhã de setembro, na primeira manhã de setembro, ela acordou com um sentimento de que algo estava acontecendo. Tomou um café rápido e saiu para a faculdade. Quando se aproximou de seu carro percebeu que ele parecia ligeiramente desbotado, nada demais, apenas menos brilhante que o normal. Ela tinha ganhado de seus pais um gol laranja metálico, daqueles “mamãe não me perca na neblina”.

O dia correu normalmente. Assistiu suas aulas e voltou para casa. Durante a tarde foi à academia, voltando quase à noite, exausta. Releu suas anotações antes de dormir. Contudo, no dia seguinte, percebeu que não apenas seu carro estava mais desbotado como quase todas as cores brilhantes. Preocupada, fez uma anotação mental para marcar uma consulta no oftalmologista. O resto do dia diferenciou-se do anterior apenas nas matérias que estudou. No terceiro dia sentiu uma certa dificuldade em reconhecer as tonalidades de amarelo e azul. Durante a tarde foi ao médico. Não havia nada errado com seus olhos e o oftalmo ficou intrigado. Disse que se piorasse ela deveria voltar, mas provavelmente era algum tipo de estresse. Bruna não compreendeu como poderia ser, afinal a última coisa que sua vida era, era estressante. Na verdade considerava sua vida bem tediosa.

No entanto, no dia seguinte sua visão não parecia ter piorado. Não melhorara, mas isso poderia significar que voltaria ao normal. Esse pensamento soou estranho. Será que ela gostaria de voltar ao normal? Sua vida toda fôra normal. Não, ela queria enxergar como antes. Que bobagem pensar que uma deficiência visual faria sua vida diferente ou mais interessante.

Durante uma semana Bruna não sentiu nenhuma mudança, acostumou-se com imagens mais desbotadas e menos tonalidades. Depois de dez dias tinha esquecido de seu pequeno problema oftalmológico. Tinha outras preocupações agora. Nunca conseguia boas fotos para a aula e deveria entregar novas fotos no final da semana. Para piorar, fotos P&B, impossíveis em sua opinião. Reservou a tarde para fotografar e seria o que Deus quiser. Decidiu pelo centro velho de São Paulo. Sabia ser um lugar batido. Todos fotografavam ali. Porém, não tinha a intenção de se arriscar. Se não tinha competência para tirar fotos interessantes, procuraria um lugar que falasse por si. Caminhou e fotografou a tarde inteira. Num certo momento, já cansada, sentou-se nos degraus do Teatro Municipal. Um casal ao seu lado namorava. Suas mãos, seus beijos, todo gesto cheio de paixão. Atrás, um outro casal. Não estavam brigando. Apenas desejavam sorte um ao outro. Uma certa frieza no olhar. Bruna sentiu-se compelida a tirar a foto.

Depois de reveladas, sua professora as analisou. Todas as fotos estavam boas tecnicamente, mas vazias. Então, ela parou na foto dos casais. Um dez. Uma foto de tristes velhos fatos. Uma foto de álbum de retratos. Aquela foto em preto e branco contava como a cor da paixão perde seu brilho. Bruna percebeu que da mesma forma que perdera a capacidade de enxergar tonalidades fortes e cores vibrantes, aquele casal perdera suas cores. Sentiu que sua visão havia auxiliado. Seu problema era de alguma forma o seu diferencial.

O resto do semestre correu normalmente. Provas médias. Desempenhos comuns e nenhuma melhora, apenas um leve aumento na destonalização. Os médicos ainda não podiam explicar, mas diziam que “o quer que fosse” havia estabilizado. Ela não se importava. Podia levar sua vida de sempre. Contudo, algo, aquele algo do passado, estava voltando. Sentia que quase podia se lembrar do que a comovera. Isso a animava. Não vivia mais por uma fagulha. Havia uma chama. Uma necessidade incrível de descobrir. Ela sabia que esse algo a faria reaprender a olhar o mundo, mais do que sua visão prejudicada. Na verdade, sua visão nem estava tão prejudicada. Ora, ainda enxergava cores primárias e secundárias.

Quase no final do semestre, sua professora de fotografia explicou o trabalho final. Uma única foto P&B, com um tema: você. Porém, os alunos não poderiam tirar fotos de si mesmos. Teriam de achar algo com que se identificassem e que, numa foto, os representassem. Havia outro complicador. Essa foto teria de se relacionar a outra foto, de um profissional. Um tipo de releitura de uma foto antiga na qual o aluno se inserisse.

Para Bruna, aquele trabalho era complicado demais. Ela não sabia quem era, não entendia nada de si e não se identificava com nada. Até pensou em sentar sua mãe numa cadeira de balanço e tirar a foto de perfil. Mas seria uma mentira e a referência não seria uma foto. Resolveu, então, fazer uma espécie de “brainstorm” fotográfico. Comprou diversos rolos de filmes P&B e começou a fotografar tudo e todos.

Numa segunda-feira, andando na avenida Paulista, algo brilhou de repente. Um flash tão forte que por um momento tudo ficou branco. Aos poucos, sombras começaram a aparecer e objetos a se delinear. Sua visão voltou, só que sem cores. Ela estava enxergando em P&B. Sua doença, num instante, foi ao extremo e Bruna perdeu todas as cores. Nesses primeiros minutos o desespero foi tão grande que ela não percebeu que batera uma foto.

De lá, foi num táxi direto para o hospital. Uma semana de exames, muitos médicos e nenhuma explicação. Bruna não se conformava. Quando sua mãe chegou com as fotos reveladas, ela não quis olhar. Pediu que as deixasse na cabeceira da cama, depois veria como ficaram. As fotos ficaram dois dias ali. Quando ela finalmente as olhou, entendeu tudo. A última foto não tinha nada aparentemente importante. Era uma multidão, como as que vemos todos os dias, nos horários movimentados, atravessando a Paulista. Porém, havia uma espécie de buraco nessa massa. Um vácuo, um ponto no qual uma pessoa faltava. Um pessoa parada olhando para trás.

Bruna olhou para trás. Olhou para o seu passado e aquela sensação, aquela lembrança, era uma foto. Sua tia, já morta, tinha lhe mostrado uma foto de Evans, tirada em Nova Iorque, nos anos trinta. Uma moça olha para trás na multidão. Aquele não era mais um retrato em branco e preto para Bruna. E não a maltratava mais.





Posfácio

O leitor deve se perguntar: como foi a vida dela depois disso? E como posso ter inventado tão absurda doença? Pois respondo ao leitor: Bruna viveu coloridamente em preto e branco e... Bruna não existe.




quarta-feira, agosto 25, 2004

Despertador


estação sumaré


O alarme continua tocando, mas já o desliguei.... o som... é minha cabeça doendo, em ondas, como o barulho do relógio. Cambaleante, eu levanto em direção ao banheiro. A dor é ignorada toda manhã. Qualquer noite de sono com menos de cinco horas, interrompida tão abruptamente significa uma cabeça latejando. E quase todas as noites são assim. Arrumo-me no automático, sem consciência do processo. Em vinte minutos estou na cozinha, engolindo dois comprimidos para a dor e saio. A cidade caótica me recebe com suas ruas engarrafadas. São outros tantos acordados para o mal-humor. O sono prejudica os reflexos. Não chego a bater, mas cometo imprudências. Todos cometem.


Hoje, como toda Quarta, é meu rodízio. Começa às sete. São seis e meia da manhã e a cidade já está congestionada. Odeio acordar tão cedo. Me sinto na escola de novo. Só que agora, sou eu que preciso dirigir pelas avenidas esburacadas e escapar de motoristas loucos. O rádio do carro me diz bom-dia. Notícias. Mais um aumento de combustível. Era para o carro facilitar minha vida. Já dependo dele e, com isso, meu dinheiro escorre para os postos de gasolina. Uhm, outro atentado em Israel. Chamam terrorismo. Aquilo já é a guerra civíl mais longa da História. Troco de rádio. Melhor ouvir uma música. Dez pras sete. Se não chegar logo, recebo uma multa.

Escritório. Ainda é muito cedo. Só entro às oito. Desço para tomar um café.

- Preto, puro. E um pão na chapa.

Outros na padaria olham para suas xícaras. Quase ninguém fala. A cidade está matando o espírito de muitos. Trabalhos mal remunerados e exaustivos. Deveria ter comprado o jornal. Não agüento olhar para o nada. Contato visual pode ser insultante a essa hora da manhã. Pago a conta e passo na banca. Tenho uns vinte minutos antes do expediente. Entro na sala e começo a ler as notícias. São sempre as mesmas. O chefe é o primeiro a chegar. Vem me ver no escritório. Os prazos finais atrasados, RH confuso, faltou algo na apresentação, cliente novo, cliente velho, tudo sempre igual, tudo sempre caótico.

Outros funcionários, ordens e stress. Bato os olhos sobre a foto na mesa. Praia. Que saudade do horizonte. Nessa cidade só vemos prédios. Não importa. Se tudo der certo volto pra praia no fim do ano. Esse pensamento me anima. Hora do almoço. Não dá para descer e comer em paz. Tenho de terminar um projeto. Pego o telefone. O número do delivery decorado, o pedido também. Se pudesse, pediria um doce. Não, apenas uma salada e um filé de frango grelhado. Mais um dos prazeres humanos alterado pela sociedade e pela mídia. Deveria ter nascido homem. Não, não seria melhor, eles também são cobrados.

Durante a tarde a loucura continua. O cansaço aumenta. São quase cinco. Mais uma hora e posso voltar pra casa. O chefe entra.

- Regina, o projeto está pronto?

- Está sim, senhor.

- Ótimo. Eles querem ver ainda hoje. Leve até lá e faça uma boa apresentação. Precisamos dessa conta.

- Agora? Estou de rodízio.

- Dá um jeito.

Ele sai. Droga! Se pegar um táxi atraso por causa do trânsito. Além disso, esse muquirana nunca reembolsaria. O jeito é pegar o metrô. Pego a pasta e saio. A estação é próxima. Caminho xingando meu chefe. Ninguém repara. Todos xingam alguém no fim do dia. Entro na estação. Já está lotada. Hora do rush. Na plataforma, as pessoas se empurram para conseguir os melhores lugares. O metrô chega. Três minutos pode ser muito tempo. Empurro os que estão na minha frente, tentando entrar. De repente, alguém me puxa por trás. Caio no chão. Quando olho pra ver meu agressor, era uma velhinha. Até as senhoras são agressivas aqui. Perdi esse. O próximo em três minutos. Fito o relógio da plataforma. Com sorte, consigo chegar antes do fim do expediente. Espero. Meu chefe vai arrancar minha pele se não conseguir.

Outro metrô chega. Dessa vez consigo entrar. Fico em pé, claro. São só 5 estações. Então, ele diminui a velocidade e pára. As luzes apagam e uma voz informa que os trilhos esquentaram demais. Ficaremos uns minutos parados. Seguro a bolsa e a pasta grudadas no meu corpo. Só faltava ser assaltada. Uma criança começa a chorar no vagão. Inferno! As luzes voltam e recomeçamos a andar. Ao chegar no cliente, a secretária me pede para esperar. Sento num sofá e a encaro. Passei o dia todo trabalhando, me fazem sair do escritório e vir até aqui pra esperar. Dez, vinte, trinta, quarenta minutos. A secretária indica o caminho da sala de reuniões. Três homens entram.

Terminada a apresentação, respondo perguntas. Querem alterar algumas coisas. Digo o que é possível alterar sem arruinar o conceito. Discutem entre si, na minha frente, sem ao menos se importarem com minha presença. Fechamos negócio. O contrato será assinado no dia seguinte. Dessa vez irão até o escritório. Saio apenas com um pensamento: casa. Antes preciso voltar ao escritório e falar com o chefe. Aproveito pra pegar o carro. Merda! É rodízio. Ainda falta uma hora pra acabar. Bom, até conseguir chegar lá e falar com o chefe, já deu oito horas.

Depois de acertar tudo no escritório, olho o relógio. Oito e quinze. Já posso ir. No elevador, o acessorista pergunta se eu só trabalho. Cheguei cedo, vou embora tarde.

- Não tenho vida! – respondo.

Pego o carro. O trânsito não está tão ruim. A maior parte sai do trabalho às seis. Volto para a casa vazia. Estou tão cansada que agradeço por não morar com alguém. Tudo que quero é sossego. A empregada passou pelo apartamento. Está limpo e tem comida na geladeira. Sirvo um prato antes de perceber que estou com fome. Ligo a televisão. Nada. Coloco num canal de filmes. Já assisti esse, mas não tem nada melhor. Depois do jantar, tudo que quero é um banho. Tirar a poluição do corpo. Saio revigorada. Acho melhor dormir cedo. Na cama, o cansaço evidente. Contudo, não durmo. A adrenalina que me manteve durante o dia, agora, não me deixa dormir. Minha mente divaga. Penso em praias e férias. Então, algo mais preeminente toma meus pensamentos. As modificações. Levanto e ligo o computador. O trabalho consome as horas. Meia-noite, uma, duas, três. Preciso dormir. Volto pra cama e desabo.

O alarme continua tocando, mas já o desliguei.... o som... é minha cabeça doendo....




Sampa
Posted by Hello