quarta-feira, setembro 22, 2004

Frio


Campos

Pinheiros contra o céu. O vento gelado carrega nuvens brancas e raios dourados atravessam as árvores, tocando gentilmente a pele dela, tentando inutilmente aquecê-la, num gesto de compaixão e beleza. Thaís caminha pelo bosque sozinha. Pensando em tempos passados nos quais aquela cidade nada mais era que uma estação de tratamento de tuberculose. Ela pensa em alugar um cavalo. Galopar pelas montanhas sozinha. Rodrigo partiu. Eles sempre partem. De alguma forma, ela sabe que deveria estar mais triste. Talvez o frio a faça economizar emoções.
Thaís resolvera ficar um dia a mais que os amigos. Espairecer, disse a eles. O que ela queria era se livrar das pessoas. Caminhando na direção dos cavalos, ela nota um pequeno gato preto sobre a cerca. O felino caminha com elegância e agilidade, como se não notasse a dificuldade das manobras. Queria ser um gato, pensa a moça. O olhar do gato responde: talvez seja! Thaís ri internamente. Nos lábios apenas um singelo sorriso transparece. O garoto dos cavalos pergunta se ela deseja um cavalo bem manso. Não, responde a garota, um que galope bem. Ele aponta para um garanhão dourado. Ela paga por duas horas. O menino olha espantado e pergunta se ela precisa de dicas de lugares. Não, responde Thaís montando no cavalo.
Ela envereda para as montanhas, seguindo uma velha estrada de terra, rápida, o vento forte no rosto, o movimento ritmado do animal e a liberdade do momento. Já faz muitos anos que ela fez aquele caminho. Contudo, conhece-o por instinto e ninguém costuma usá-lo. A primeira parte do trajeto é uma reta em campo quase aberto. Os únicos sons são os dos cascos batendo no chão e dos pássaros. O caminho começa a inclinar, subindo levemente, não é preciso diminuir a velocidade, não ainda. Sua mente viaja mais rápido e Thaís pensa em quanta beleza o mundo guarda, belezas tão fortes, tão intensas que provocam dor no seu intimo.
Quando Rodrigo e os outros partiram, ele a perguntou se ela estava bem, se ela compreendia. Sim, ela compreendia e agora estava livre. Eles fingiram entender seus motivos para ficar, uma amiga se ofereceu para acompanha-la. Thaís recusou. Precisava daquela solidão. A mata fechava-se sobre a garota, o sol escondido sobre as folhas. Ela sentiu-se distante, não fisicamente, mas emocionalmente. Uma pessoa deslocada, sem ligações reais com o mundo. E se ela caísse do cavalo, se morresse naquele instante, será que seria tão ruim? Ela desejou que acontecesse. Contudo, não desejou a ponto de provocar. Estava apenas cansada da vida. Sabia que passaria, que reconstruiria sua vida e ainda tinha objetivos. Eles teriam de ser seu rumo, objetivos, não pessoas ou prazer de viver. De alguma forma, ela gostava do mundo, da vida, podia ver e sentir sua beleza, mas se não conseguisse transformar o que sabia em algo concreto, não conseguiria espantar aquele desejo mórbido. Também sabia que precisava de ligações mais intensas com as pessoas, mas já não sabia como criá-las. Existiam pessoas que ela amava e que estavam em sua alma, mas ela acreditava que entenderiam se não agüentasse mais.
Agora, a estrada virara uma trilha entre árvores e Thaís já podia ouvir o barulho da água caindo. Trotando, ela entrou numa clareira e lá estava, uma grande cachoeira, a água prateada caindo sobre um enorme fosso azul escuro. Reflexos dourados na superfície criavam a impressão de um poço de jóias. Trepadeiras verde-vivo caiam pelas árvores inclinadas sobre a água. As pedras formavam desenhos diferentes para cada olhar. Alguns viam escadarias, outros torres, ela via apenas beleza pura. Desmontou do animal e deixou-lhe beber daquela água gélida e clara. Thaís caminhou até uma das rochas que proporcionava uma visão perfeita do lugar. Sentada, apenas respirando aquele ar puro e com odor de pinheiros, Thaís sentiu-se viva como nunca antes. Um espetáculo natural com uma vida própria a rejuvenescia.
O amor que sentia pelo mundo era tão imenso, mesmo assim, suas ligações tão poucas. Rodrigo não passara de uma tentativa de envolver-se com a vida, uma vontade de normalizar sua pessoa, quando isso teria sido tão prejudicial. Thaís percebia agora que sua grande virtude era exatamente esse deslocamento. Ele lhe dava a capacidade de apreciar o mundo e representar suas belezas, de pensar e criar algo próprio. Também lhe dava a capacidade de entender as pessoas e tocá-las sem se contaminar, sem tornar-se parcial demais. De amá-las como um todo e ter esperanças, dar esperanças e ajudar. Não fazer parte lhe dava um papel no mundo e um impulso para continuar.
Thaís levantou-se, montou no cavalo e continuou subindo. O entardecer aproximava-se. No cume da montanha, ela parou e olhou. Observou com olhos de escritora, daquela que representa, toca e ensina, mas não daquele que vive cotidianamente. A esfera vermelho-sangue, a neblina a sua volta e picos esbranquiçados com suas araucárias saudando um céu colorido e quase ou sempre divino. Como uma miragem num deserto frio, o círculo que propicia a vida desaparece num vermelho irreal, quase obra de artifices tecnológicos. Numa piscina de fogo líquido, ele se despede deixando-nos o vento cortante e impiedoso. A lua crescente nos saúda, anunciando a noite de seres gélidos. Sob a luz prateada, Thaís desceu a montanha e voltou a viver.

domingo, setembro 05, 2004

Duplo


atget_austrian

Levei muitos anos para tomar coragem e contar essa história. Ricardo era um grande amigo e o que aconteceu com ele nunca fez muito sentido. Porém, o que faz sentido nessa vida? Para os que ficam, nem a morte. Fatos estranhos ocorreram naqueles dias e ainda me assusto quando conheço gêmeos. Mas estou colocando o carro na frente dos bois. Não estou aqui para filosofar sobre a vida e sim contar os últimos dias de meu amigo.

Estávamos no fim do verão. Logo que voltei das férias fui visitá-lo. Ele morava num apartamento em Higienópolis, um bairro de classe média-alta de São Paulo. O prédio, muito antigo, estava bem conservado. O apartamento era amplo e extremamente organizado. Essa era a maior característica de Ricardo. Perfeccionista ao extremo, com mania de limpeza e planejamento, tudo na sua vida refletia seu modo de ser. Móveis brancos e modernos. Boa utilização do espaço. O perfeito arquiteto bem-sucedido. Contudo, sempre achei que faltava personalidade na sua casa.

Ele me recebeu com uma taça de vinho branco. Ricardo tinha uma ótima adega de vinho branco. Assim que começamos a conversar, percebi que havia algo errado. Ele riu, descoversou e por fim me contou.

- Não é nada demais – falou sorrindo – apenas algumas peças que minha mente anda pregando. Acho que trabalhei tanto nesse verão que o estresse afetou minha visão. Tenho visto algumas coisas duplicadas.

- Como assim?

- Ah, começou semana passada. Saí para o escritório e duas senhoras, iguaizinhas, atravessaram a rua. Na hora não dei importância, mas no semáforo seguinte, dois homens gêmeos aguardavam na calçada. Quando cheguei ao escritório, duas garotinhas idênticas brincavam de amarelinha na rua.

- Foi apenas coincidência.

- Foi o que achei. Só que fiz a bobagem de comentar com o pessoal do trabalho. Agora, todo dia há algo duplicado na minha sala. Começou com o grampeador. Ontem, eles conseguiram duplicar meu Mondrian.

- Não é difícil conseguir uma cópia de um Mondrian. Desencana, logo eles cansam de brincar.

Continuamos conversando e rindo do que mais os colegas de Ricardo poderiam duplicar. Contudo, o semblante dele estava pesado. Disse para mim mesmo que era excesso de trabalho e combinamos de almoçar dali a três dias.

No dia combinado, Ricardo apareceu no restaurante atrasado. Não era do seu feitio perder a hora. Sua aparência cansada me assustou e sugeri que precisava de umas férias. Ele me contou que não era o trabalho que o estava atormentando e sim a estranha duplicação das coisas. Dessa vez não poderia ser alguém do escritório. Seu computador fôra duplicado. Ninguém gastaria tanto dinheiro para pregar uma peça. Ou se daria ao trabalho de copiar tudo que havia num para o outro. Tentando animá-lo, comentei:

-Não reclame. Agora você tem dois computadores. São apenas objetos.

- Não, não são. Olhe em volta.

Passei os olhos pelo salão do restaurante. Para meu espanto, havia pelo menos quatro pares de gêmeos em outras mesas. Foi assustador. Contudo, me controlei e tentei avaliar a situação. São Paulo era uma cidade enorme e estranha. Nós nos acostumamos com pessoas diferentes ou situações peculiares. Provavelmente passavamos por gêmeos o tempo todo, apenas deixamos de notar. Tentei convencê-lo disso, mas Ricardo estava irredutível. Acreditava piamente que o universo estava brincando com sua mente.

- Não é só aqui. A secretária do meu chefe tem uma irmã gêmea trabalhando na recepção. – Ele completou.

- Isso é normal. Ela conseguiu que a irmã fosse admitida. Afinal, ela é a secretária do chefe, não?

- E como você explica os dois vasos idênticos na minha casa hoje de manhã?

- Essa é fácil. A Val deve ter comprado.

Valéria era a namorada do Ricardo há dois anos. Tinha a chave do apartamento e vivia reclamando que faltavam objetos de decoração lá. Era a cara dela simplesmente comprar algo e colocar na sala, sem perguntar. Ricardo balançou a cabeça e começou a comer desanimado. Ao olhar o prato dele, quase tive um enfarto. Todos os alimentos, até o grelhado, vieram em duplas. Quando apontei, ele resmungou que já fazia dois dias que isso acontecia e continuou a comer.

Nos dias que se seguiram tentei reparar mais no mundo ao meu redor. Procurava gêmeos ou objetos duplicados em toda parte. Contudo, era raro ver duas pessoas iguais juntas. Comi no mesmo restaurante o resto da semana e em nenhum dia vi pessoas ou pratos duplicados. Cheguei a pedir o mesmo grelhado que Ricardo duas vezes. E sempre vinha a quantidade normal de comida. Ora, será que aquilo só acontecia com ele? Por quê? Resolvi telefonar e descobrir como ele estava. A secretária eletrônica atendeu e a mensagem tocou duas vezes. Depois de dois sinais pude deixar meu recado. Naquela noite, Ricardo me telefonou. Pediu que fosse até sua casa para conversar. Mal cheguei e ele me interrogou:

-Você está brincando comigo? Por que deixou dois recados iguais na secretária?

- Não deixei!

Ele soltou um longo suspiro e me convidou a entrar. Os porta-retratos, vasos, livros, CDs, mesmo os móveis, estavam todos duplicados. Nos sentamos e começou a falar. Sua vida estava um inferno. Tudo e todos apareciam aos pares. Não podia explicar e aquilo o enlouquecia. Observei o apartamento. Continuava organizado e o excesso de objetos não alterava o efeito de amplidão e limpeza. Na verdade, a área do lugar parecia ter aumentado para compensar as aparições. Ricardo concordou. Disse que medira a sala e esta dobrara de tamanho.

- Isso não é tão ruim! – tentei brincar. O que eu estava pensando? Dexei-me levar pela loucura do impossível. Porém, Ricardo estava em frangalhos. Sua teoria de duplicação não era acurada, como me mostrou. Não apareciam apenas cópias das coisas, mas réplicas espelhadas.

- Os gêmeos que conheci nos últimos dias têm personalidades opostas, um é destro, outro canhoto e assim por diante. Olhe para os retratos. São cópias espelhadas. É alguma mensagem.

- Ora, não exagere, Ricardo. São apenas acontecimentos estranhos. Algo fora de sincronia. Por que diabo o universo teria uma mensagem apenas para você?

- Não sei. Talvez eu não seja o único. Minha vida está se desfazendo.

Nesse momento, um barulho de chaves interrompeu a conversa. Valéria entrou nervosa, vermelha, nem notou minha presença na sala. Olhou para Ricardo e começou a gritar:

- Como você pode? Dediquei dois anos da minha vida para você e me trai assim, na cara dura.

- Do que você tá falando? – perguntou Ricardo, abobado.

- Eu vi você com aquela vadia. Nem se deu ao trabalho de esconder. Você sabe que eu tomo café no Fran’s todo dia.

-Eu não fui ao café, hoje. Muito menos com uma mulher.

- Eu vi. Pare de mentir. Você estava se agarrando com ela. Nem olhou na minha cara. Obviamente passou a noite com a galinha.

- Val, querida, não era eu. Nunca faria isso com você.

- Pára com isso. Pelo menos assume o que fez. Sei lá, diz que não significou nada. Mas não mente pra mim. – lágrimas escorriam pelo rosta da jovem. Seu corpo tremia de raiva.

- Eu juro. Passei a manhã toda no escritório. Pergunte por lá.

- Desgraçado. E o que você fez com o apartamento? Não importa. Aqui está sua chave. Está tudo acabado. – disse saindo.

Ricardo não disse nada. Sentou-se e escondeu o rosto nas mãos. Naquele momento pensei que ele pudesse estar enlouquecendo. Que fazia as coisas e não lembrava. Que via coisas. Sem me despedir, voltei para casa e tentei esquecer o assunto. Durante uma semana, evitei ligar ou encontrar com ele. Tentava, desesperadamente, encontrar uma explicação para tudo que não envolvesse a sanidade mental de meu amigo. Além disso, eu mesmo vira os gêmeos no restaurante.

Então, algo aconteceu que mudou toda minha atitude. Fui ao shopping revelar um filme das férias. Estava despreocupado, passeando enquanto as fotos ficavam prontas. Na escada rolante oposta, descendente, vi Ricardo e uma moça rindo. Chamei por ele, mas não me respondeu. Dei a volta e desci atrás. Queria falar com ele, parecia bem. Todavia, quando cheguei embaixo, ele desaparecera. Resolvi passar na sua casa à noite. Lá chegando, a pessoa que abriu a porta não parecia o Ricardo que conheci. A barba mal-feita, roupão e restos de comida pelo apartamento. Seu olhar beirava o de um louco.

- O que aconteceu? – perguntei –Te vi no Pátio à tarde, você não respondeu.

- Não era eu, pra variar.

-Como assim?

- Está bem. Você é o único que me ouviu com calma até agora. Lembra da Val? Pois é. Dois dias depois fui demitido. Disseram que entrei no escritório no fim de semana e vendi todos os projetos. Ah, também dei uma festa.

-Peraí, você fez tudo isso?

-Não. Acho que não sou o único que vejo duplos. Na verdade, acho que me dupliquei. Era só o que faltava.

- Isso é loucura. Você precisa de ajuda médica.

-Já procurei ajuda. Não tenho dupla personalidade. Aliás, segundo o psiquiatra, não tenho personalidade. – Disse e desatou a rir.

Aquilo me assustou. O que quer que estivesse acontecendo o afetara. A casa duplicada não me espantava mais. Aterrorizante era o olhar de Ricardo ao dizer que o universo destruiu sua vida. Saí de lá o mais rápido possível. Não porque não me importava, eu me importava, mas porque tive medo.

O fundamento desse medo se concretizou poucos dias depois. Recebi um telefonema de madrugada. Era Ricardo:

-Ele está aqui. – e desligou.

Na hora, não entendi o que ele queria dizer. Quando pela manhã Val me ligou histérica, as coisas começaram a se encaixar. Não tenho coragem para dizer o que entendi. Não iriam acreditar. Vou apenas contar os fatos. Cada um chegue à conclusão que lhe convir.

Ricardo foi encontrado morto em seu apartamento. A perícia concluiu suicídio. Porém muitos fatos não puderam ser explicados. O tiro desferido pela arma na mão de Ricardo foi reto, para a frente dele. O tiro que o matou, também reto, veio da direção oposta. A bala na parede era exatamente igual à que estava em sua cabeça. Contudo, a arma só disparou um tiro. A bala foi o único objeto duplicado encontrado em seu apartamento. Todo o resto estava normal. O local estava trancado por dentro e o porteiro disse que Ricardo foi o único a subir, duas vezes. Não encontraram bilhete. O detalhe que utilizaram para concluir que ele se matara: um livro de Edgar Allan Poe sobre a cama, abeto no conto “A queda da casa de Usher”.

Não olho mais para o espelho.