quarta-feira, setembro 14, 2005

“Humano...”


prólogo

Fiaso é uma cidade de estudos. Feita grandiosa, abrange o mundo em suas bibliotecas e universidades. Abraça a criação artística em seus museus, catedrais, em todos os edifícios e instituições. Sua concepção de sociedade enaltece a Grécia de Péricles. Ao conhecê-la pode-se visualizar toda a evolução cultural do homem. A cidade tem como ponto mais importante sua biblioteca central. As lendas contam que os deuses, desgostosos com a civilização humana, escolheram suas melhores manifestações artísticas, literárias e filosóficas, e com estas criaram Fiaso. A biblioteca central é a própria biblioteca de Alexandria.

E como as lendas que a criaram, os moradores de Fiaso são deuses do conhecimento. Suas vidas são dedicadas aos estudos, às obras-primas, às manifestações e reflexões do melhor da natureza humana. Suas realidades são irrealidades. Suas vidas intelectuais são sustentadas por sofrimentos tão assustadoramente reais que extrapolam o possível.

Fiaso muda de nome quando vista por quem a sustenta. Fiaso torna-se Fasio, um modo fanho de expressar o vazio das vidas que trabalham para mantê-la funcionando. Vidas que não entendem a dimensão de obras que apequenam o que lhes é tão-somente humano. O sofrimento calça as pedras das ruas sábias. São duas cidades, pois uma cidade que espelha-se em Péricles não abarca uma cidade incapaz de se ver no espelho. Os deuses convivem com os mortais, mas o real é um Prometeu incapaz de libertar-se e obrigado a sofrer pela eternidade por possibilitar a existência do fogo do conhecimento no mundo humano.

É quando um forasteiro vindo de uma cidade comum, alguém cujo barco se perdeu na névoa, chega à Fasio, que as diferenças podem se tornar gritantes. Antes uma sociedade acomodada pode sofrer a revolta dos mortais. Porém, mudanças não ocorrem do nada e o forasteiro apenas precipitou os acontecimentos. O porto esculpido na pedra parecia ter sido construído no tempo dos deuses e inesperava os fatos porvir.

domingo, maio 01, 2005

Névoa

Esse texto precisa de uma introdução. Sei que não publico nada novo há algum tempo. Contudo, esse texto também não é novo. Na verdade, é antigo. É mais um depoimento que um conto. É algo que preciso me livrar. Escrevi no começo de 2003 e muito mudou desde aquele tempo. Eu morei em Florianópolis, tive outra crise depressiva em 2004 e finalmente larguei a faculdade para mudar de curso. Talvez, um dia escreva o que houve depois. O que importa é exorcizar uma parte do que passei. A depressão voltou depois de 2003, passou novamente e me fez mudar. A conclusão ainda é a mesma, assim como o caminho. Eu enfrento essa tempestade de tempos em tempos. Já faz parte de mim. É uma doença, como diabetes. Deve ser tratada e não ignorada. E, acima de tudo, deve ser encarada pelo que ela é: terrível, perturbadora e involuntária. Eu a enfrento todos os dias. Não vou me render, por mais fraca que já estive. por mais que quisesse morrer.
Névoa

“…e é isso a que se chama um vivente: um pouco de carne oferecida à agressão do
real.”
A. C-Sponville

Não acontece de uma hora pra outra. É como um nevoeiro. Primeiro o dia torna-se cinza, o ar fica mais pesado. O horizonte é o primeiro a desaparecer. A névoa aproxima-se lentamente. Cobre as casas, as matas, você. No começo, acreditei que passaria. Porém, um dia segue o outro e não conseguia enxergar além da neblina. Não era minha primeira depressão. Pude reconhecer os sinais, mas não quis acreditar. Aos dezesseis meu dia acinzentou pela primeira vez. Um ano. Todo perdido. Se me perguntar o que lembro, direi que quase nada além dos dias cinzas. A sensação é uma angústia constante, dilacerante e sem objeto. Com a angústia vem o medo e o desânimo. Não queria ir à escola, ou ao cinema, à balada, nem ao menos levantar da cama.

Daquela vez, não procurei ajuda. Parti numa viagem para o nordeste. No carro, procurávamos o Sol. Em Pernambuco, estado que me trouxe alegria no passado, só chuva. Minha mãe diz que só choveu um dia. Foi o único que vi. Eu lia o Werther. Não é a melhor leitura para um deprimido. Contudo a identificação é enorme. Não tanto com o personagem, mas o espaço que reflete seus sentimentos. Descobri que vemos o mundo através do nosso humor. Se a linguagem faz o mundo e está em nossa mente, nosso mundo pode tornar-se escuro. Recuperei-me sozinha. Foi penoso e lento. Mais lento que a chegada da doença. Porque é uma doença.

Dessa vez foi pior. Achei que tinha me livrado do causador dos males. Rompera com meu pai logo após completar dezoito anos. Meu primeiro ano de faculdade foi maravilhoso. Minha vida estava nos trilhos. Então descarrilhou. O mais estranho foi perceber. Logo nos primeiros sintomas, desconfiei. Quando estava sozinha, uma angústia tomava conta. Não sabia o que queria, o que fazer ou mesmo como parar de pensar. E como eu queria ser capaz de parar. Minha mente ficava intensa, pesada e muito cansada. Tentei ignorar. Meu maior medo era voltar para as brumas da depressão. Porém, assim como não podemos impedir uma tempestade, eu não pude evitar o que estava por vir.

As aulas na faculdade recomeçaram e eu não conseguia assisti-las. Toda manhã, quando acordava, me sentia exausta. Incapaz de levantar da cama. Em menos de um mês me rendi. Procurei minha mãe aos prantos. Estava aturdida, desesperada. Por que aquilo voltara? Até hoje não sei. Acho que faz parte do que sou. Diz um autor que algumas pessoas são deprimidas durante toda a vida. Apenas estão ou não em crise. Eu sou assim.

Procurei ajuda. Um profissional me passou um antidepressivo e análise. O remédio ajudou, mas não impediu o pior. Num domingo, meus amigos me convidaram para almoçar num japonês. Enquanto dirigia para o restaurante, estava nervosa. Lá, uma dessas discussões bestas começou. Uma garota reclamava a falta de atenção que prestavam nela, outro ficou bravo com a cobrança e, em pouco tempo, vozes alteradas argumentavam sobre a mesa. Minha cabeça começou a girar. Um choro e um grito entalados na minha garganta. Eu falei a meia voz:
- Chega, por favor. Não posso agüentar, não tenho estrutura emocional para isso. Parem, eu imploro.
O sussurro se transformou num pranto compulsivo. O meu amigo a direita me abraçou e me deixei chorar por vários minutos. A mesa estava silenciosa, ninguém dizia nada ou mesmo respirava de forma sonora. Estavam assustados, aturdidos, com dó ou preocupados. Sempre fui sensata. A razão da turma e o muro das lamentações. Minha casa estava sempre aberta para desabafos. Porém, eu nunca tinha estado tão vulnerável. Depois não lembro direito. Na segunda-feira acordei para a faculdade. Sentia-me abatida, cansada. Entrei no carro respirando mal. Na avenida, minha visão desapareceu. Enxergava tudo branco. Já não conseguia respirar e uma náusea terrível se manifestou.
O medo naquele momento é indescritível. Encostei o carro e tentei me controlar. Contudo, só conseguia pensar uma coisa: “preciso voltar pra casa”. Foi o que fiz. Arrasada, fui dormir. Acordei a noite. Tentei entender o que tinha acontecido. Era um ataque de pânico. Mais uma peça da depressão.

Não pude acreditar. Desafiando meu medo, tentei sair de casa no dia seguinte. Ao colocar o pé no hall, fiquei branca. Mesmo assim continuei. Minha mãe me pedira para ir ao supermercado com ela. Quando chegamos lá, ficar em pé exigia toda minha concentração. Num determinado momento, ela se afastou para pegar algo. Nesse lapso, notei onde estava e a quantidade de gente a minha volta. Não pude suportar. Encolhi-me atrás do carrinho e fixei os olhos no chão. O medo dominara minha mente e manifestava-se de forma física. Meu corpo não me obedecia, apenas implorava em voltar.
Toda manhã ao acordar, eu dizia a mim mesma: vou conseguir sair. Não adiantou. Os dias passavam e eu me sentia mal apenas ao pensar em sair. Na análise, a notícia era simples. Eu não estava com síndrome de pânico, apenas ataques ocasionais. Minha depressão tentava se manifestar de todas as formas possíveis. Disse o médico que em poucos dias eu conseguiria sair. Não foram poucos, talvez tenham sido, mas para mim, pareceu uma eternidade. Trancada, com medo, muito medo. Minha família tentava ajudar. Tentava me alcançar, eu queria morrer. Numa noite, meu padrasto me convidou para ir ao cinema. Sessão da meia noite, ingresso comprado pela internet, tudo para evitar pessoas. Eu tomei coragem, fui. Estava com minha mãe, meu padrasto, pessoas com quem me sentia segura. Por isso, quando a sessão anterior saiu, em bando, na minha direção, não pensei. Escondi-me atrás do meu padrasto, encolhida, olhando para o chão. O filme? Não sei qual era, não lembro. A única coisa impressa na minha memória é o desespero de estar entre tantas pessoas.

Sei que melhorei. Aos poucos, depois de um mês ou mais, pude sair sozinha, para lugares não muito agitados. Só que isso me fez tomar uma decisão. Essa foi a parte mais difícil da depressão. O momento em que ela se colocou entre mim e meu sonho. Não podia freqüentar a faculdade. Tentava, me torturava, me culpava. Culpa! Se meu pai fez algo comigo, foi me ensinar a sentir culpa, por tudo. A depressão me forçou a reavaliar minha vida, minhas prioridades. Eu devia ser minha prioridade e naquele momento, eu estava doente. Admiti. Tranquei a faculdade. Estava oficialmente inútil. Só que não conseguia ver meus dias, minhas noites. Dormia muito, ficava o resto do tempo sonolenta e me torturando. Pensamentos ruins. Não conseguia assistir televisão, prestar atenção em filmes, ler meus livros ou escrever.
Abril, maio, junho assim. Sem memória, sem ação, sem ninguém. Nesse meio tempo, em junho, na verdade, minha melhor amiga voltou dos EUA. Tentei melhorar por ela. Coloquei-me de pé. Ela pedira aulas para o vestibular. Organizei meu tempo. Enquanto ensinava não era eu mesma. Encarnei um papel. Tornei-me uma professora dura, exigente, incansável. Fazia isso por ela. Um mês dando aulas. Só me lembro disso, dos momentos em que estava naquela sala falando sobre reações químicas, livros, História. No final de julho me levei a acreditar que estava melhor. Que já era capaz de me reconstruir.
Ledo engano. Meus amigos me convidaram para passar quatro dias em Itatiaia. Caminhar, visitar cachoeiras, me distrair. Fui. No primeiro dia parecia tudo bem, estava sob controle. Fiz trilhas enormes no meio de uma mata densa e sombria. Não me lembrava de Itatiaia ser tão sombria. No segundo dia fomos para Mauá. Lugar pitoresco. Comecei a sentir o isolamento, a angústia claustrofóbica. Naquela noite entrei em crise. Chorava convulsivamente, sentia dores no corpo, na mente. Tentei fazê-las passar com remédios. Tomei alguns analgésicos, deixei-me dormente, insensível. Era o aviso. No dia seguinte peguei um ônibus de volta para São Paulo. Não estava recuperada, longe disso. Sei que fiquei meses nesse estado. Não saia de casa, quando saia tinha medo de multidões, da rua, de tudo. Perdi outro semestre na faculdade. No final do ano saí do antidepressivo, mas não era mais a mesma. Nunca mais voltei a ser a mesma pessoa. Aprendi o que é dor e medo numa intensidade desumana. No ano seguinte comecei a juntar os cacos. Alguns nunca voltaram, nunca se encaixaram. Outros escolhi jogar fora. O que sobrou eu ainda não conheço.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Sebastian




A família não se reunia há muito tempo. Os filhos cresceram e sairam de casa. O pai morrera dois anos antes. Na casa moravam a mãe e Sebastian, um gato persa que completara dezesseis anos. A empregada aparecia quatro vezes por semana. Os filhos de vez em quando. O mais velho, Rodrigo, estava com vinte e oito anos. O mais novo, Rafael, vinte e cinco. Era domingo. Joana, a mãe, preparara uma refeição enorme. Pouco antes do almoço, Rodrigo chegou com a esposa e um bebê. Sebastian sabia, instintivamente, que mais pessoas viriam. Não sabia porque e não se interessava. Fechou os olhos e voltou a dormir.

Nos últimos anos perdera a vitalidade e passava a maior parte do tempo numa almofada no sofá. Sentia falta do vigor juvenil, de correr pela casa, brincar com borboletas, mas só pensar nessas coisas já o cansava. Sua visão já não era tão boa quanto antes porém, conhecia cada pedaço da casa. A audição, no entanto, continuava aguçada. Assim, quando a campainha tocou, Sebastian já ouvira passos e vozes na calçada. Às vezes, quando não queria dormir, observava o movimento da rua. Pessoas indo e vindo, pessoas que ele não conhecia, outras que já se acostumara. Um velhinho lhe interessava particularmente. Ele passava sempre no mesmo horário, pela manhã, com sua bengala, terno e chapéu. Naquela manhã de domingo, o velho não aparecera.

As novas visitas consistiam em Rafael e um moço. O garoto, humano preferido de Sebastian, atravessou a sala com passos ágeis e sentou-se ao seu lado. Sua mão acariciou-lhe a cabeça enquanto falava. Sebastian não entendia as palavras exatas, mas gostava da voz e tom de Rafael. Notou apenas que ele estava mais melancólico que o normal. Tinha a capacidade de perceber o estado de espírito das pessoas apenas pela voz. O gato ronronou como para dizer que estava grato pela visita e que tudo ficaria bem. Não importa o que o mundo coloque em nossa vida, somos senhores de nós mesmos, pensou Sebastian.

O moço que o acompanhava aproximou-se devagar e segurou o outro braço de Rafael de forma carinhosa. Sebastian percebeu que Rafael chorava. Levantou-se e subiu no colo do jovem, como fazia toda vez que este estava triste. Lambeu-lhe a mão e silenciosamente enrolou-se sobre as pernas dele. Era muito comum, antigamente, que Rafael brigasse com o pai. Os dois gritavam pela casa, o garoto subia para o quarto e se jogava na cama. Ele nunca batia a porta. Era como se esperasse que o gato fosse consolá-lo. E Sebastian o fazia. Entrava com seu passo leve, subia na cama e aconchegava-se ao lado do menino. Isso aconteceu por anos. A criança se tornou adolescente, jovem e, finalmente, um homem. Porém, nunca deixou de brigar com o pai. Sebastian suspeitava que o pai desaprovava algo no filho.

O jovem acompanhante de Rafael sorriu e o gato percebeu que, quando morresse, alguém cuidaria de seu menino. Com isso, ele levantou-se e voltou para a almofada. Agora, a família toda estava na sala, a mãe, os filhos e uma terceira geração. Sebastian não sabia o nome do bebê, mas confiava que nascera na melhor família possivel. A campainha tocou novamente. Dessa vez, uma prima dos garotos chegara. Devia ser uma ocasião muito especial, até a moça viera. Era bom ver todos reunidos. O gato sentiu falta do pai. Ele podia ter problemas com Rafael, mas sempre fôra um ótimo companheiro para o felino. Costumavam passar as noites na biblioteca em silêncio. O único ruído, além dos grilos do jardim, era a velha máquina de escrever. Um “tec, tec”constante e acalentador. Muitas vezes, após a morte do pai, Sebastian imaginava ouvir aquele som e dormia na certeza de que o pai estava alí.

Todas aquelas pessoas reunidas traziam boas lembranças à Sebastian. Quando os meninos ainda eram meninos, o gato pouco mais que isso, o pai vivo e saudável, a mãe sempre atarefada e a prima estridente, passavam as noites de inverno na frente da lareira. O pai sentava-se na poltrona, os garotos e a prima no chão, a mãe e o gato no sofá. Um jogo qual quer era colocado no tapete e a família ria e gritava noite adentro. No verão, eles costumavam brincar na piscina, no jardim. Essa era uma brincadeira que Sebastian nunca entendeu. Eles molhavam-se, pulavam na água e riam. O gato, desesperado, tentava alertar Rafael sobre a água. Miava quanto podia, mas o garoto não entendia e corria na direção da piscina. Nem para beber aquela água servia. Havia algo ruim, que Sebastian sentia pelo cheiro. Insetos caiam nela e morriam.

Hoje, eles não riam. Estavam contidos, às vezes sorriam levemente, mas sem risadas quentes de dias passados. Todos davam muita atenção ao felino, que acabou desistindo de dormir. Pensou que ao sentarem para comer, ele teria algum sossego. Se conhecia bem os humanos, quando reunidos para comer, ficavam mais de uma hora à mesa. Não apenas comiam, mas falavam muito. O almoço estava quase pronto. Sebastian sabia não só pelo cheiro, mas porque Joana levantou-se e começou a arrumar a mesa. Ela escolhia os lugares e desde a morte do marido, deixava uma lugar na cabeceira vazio. Sebastian espantou-se ao perceber que a empregada trouxera seu pote de ração para a sala de jantar. Colocara ao lado da cadeira da mãe. Era uma pasta de salmão. Nos últimos meses, o gato não conseguia mais comer a ração seca, então, substituiram por uma pasta. A de salmão era sua preferida e a mais rara. Realmente devia ser uma ocasião especial. Para ele, esse era um dos poucos prazeres que restara. Ele almoçou junto com a família, parecia falta de respeito não comer junto deles.

Depois da refeição, deitou-se no colo de Rafael. Rodrigo sentou-se ao lado e os dois ficaram acariciando-lhe a pelagem até que Sebastian caiu no sono. quando acordou, apenas Rafael estava na sala, com a mão pousada em seu dorso. Lágrimas escorriam pela face e o jovem o olhava de forma doce. Sebastian sentiu um profundo amor pelo garoto. Olharam-se por um tempo e o gato levantou-se. O barulho indicavam que todos estavam na cozinha, mas não se incomodou em procurá-los. Uma sensação de plenitude tomou seu corpo e a lembrança do velhinho que não passara essa manhã perpassou sua mente. Soltou um suspiro e ouviu atentamente. eram despedidas. Ele reconhecia pelo tom das vozes e movimentos. Um por um, todos vieram até o gato e lhe acariciaram. A família separaria-se mais uma vez, cada qual para o seu canto, sua vida, uma nova família.

Um som chamou-lhe a atenção. A máquina e seu “tec, tec”. Sebastian caminhou até a biblioteca. Aos de visão comum, estava vazia, mas para o gato, o pai encontrava-se lá, na cadeira de sempre. Ele sabia que o homem não perderia tal reunião. O felino subiu numa poltrona e aconchegou-se. Sua vida fôra boa. Perfeita, poderia dizer. Amava seus humanos, seus domínios, seu espírito. O som acalentador começou a dominá-lo. Pode ouvir os últimos adeus e deixou-se levar ao “tec, tec”.

(...)

Joana acordou triste. Não queria por Sebastian para “dormir”, mas o veterinário lhe dissera ser a saída digna. Logo, o gato ficaria tão doente, tão debilitado que morreria de tristeza. Isso era a última coisa que Joana queria. Sebastian fôra um companheiro fiel durante os melhores anos de sua vida. A ajudara a superar a dor da perda do marido, a partida dos filhos e os solavancos diários da vida. O almoço de domingo fôra perfeito. Todos puderam se despedir do gato. Rafael, apesar de abalado, parecia compreender que era melhor assim. De alguma forma, ver o felino uma última vez, passar a tarde com ele, servira como uma despedida honrada. e aquele gato devia ser honrado. Joana caminhou pela casa pensando nisso e procurando Sebastian. Resolveu tentar a biblioteca. Sabia que o gato gostava de dormir lá e estava certa. Ao aproximar-se, percebeu que o bichano já não respirava. Morrera durante a noite, mas morrera feliz.

sexta-feira, janeiro 28, 2005

Vinte Minutos


Império das luzes



Ela sai da aula. Sermões do século dezessete que ensinam hoje. Ainda com antíteses e barrocidades na mente, caminha para o carro. O celular toca.

– Alô! Oi Sá!

...

– Chego em casa em vinte minutos.

...

–Tá. Tchau.

O estacionamento lotado, bolsão do lago. Entre tantos carros, o dela é fácil de achar. Olha em volta, atenta. A violência da cidade chegou à universidade. Adora dirigir e, de todos os lugares, a universidade é seu preferido. Algumas vezes pega o carro e roda pelas ruas, apenas para arejar a cabeça. Sair da aula, à noite, e voltar para casa é terapia. A sua volta, diversos prédios, bem esparsos, arborizados. Até a saída do bolsão, sob a noite negra, na rua mal iluminada, ela acende um cigarro.

– Boa noite – diz o vigia.

Logo, ela está numa das grandes avenidas do campus. Alunos de todas as idades aguardam o ônibus. Ela engata a terceira. Na rotatória vazia não há necessidade de parar. Avenida principal. Quarta. Apenas o rádio e o som do vento. Grandes árvores verdejantemente negras sobre a rua. Ela começa a pensar na perfeição da noite. A saída da universidade se aproxima. O prédio da Fuvest, nem dentro, nem fora da USP. Agora, ela está fora, mas uma parte dela sempre permanece.

Pink Floyd no rádio. Parada no sinal, um menino chega a janela.

– Não tenho nada, hoje. – a resposta automática.

– Pra moça bonita vou fazer o truque mesmo assim.

Com um cordão seguro pelas duas mãos, ele faz um nó, sem soltar as pontas. Não deve ser difícil, ela pensa. Pior é ficar toda noite num farol. Verde. Ela se despede.

– Amanhã te dou algo. – ela pretende cumprir a promessa.

A essa hora, na cidade, pode-se engatar marchas raras. Terceira, quarta. Velocidade na paralela. Sobre a ponte, carros e luzes. Não são estrelas. Aqui, são ilusões tiradas de um filme futurista. Ela entra a direita. Não precisa. Provavelmente, só a faz perder tempo. Porém, gosta das grandes sombras de árvores sobreviventes. Um bairro escuro, de casas cheias de estilos, sem estilo. Não, não é o noturno de Belo Horizonte, mas é a cidade arlequinal. A literatura continua em sua alma. Ela pensa em tudo que estudou. Hoje, Vieira, amanhã, latim. Haec metuo ne sint somnia[i]. Na Pedroso, tantas sombras e silêncio. Contudo, as luzes invadem cada canto e prédios pseudomodernos surgem a sua frente.

Na ciclovia, um solitário jogging. A avenida nova, velho projeto. Não é por lá que vai. Seu caminho começa na biblioteca, passa pela livraria afrancesada e está na Inácio. Rua das baladas, qualquer dia da semana, está sempre aberta. Jazz, samba, rock, galinha frita. Se a vida é uma festa, é irônico que a rua dos bares termine no cemitério.

Quase em casa, pensa enquanto acompanha o muro branco. Última grande avenida. Sumaré. Nome indígena, córrego aterrado. Orquídea asfaltada. Essa ciclovia está deserta. Urbanos ao extremo, exercícios entre ruas. Sob o metrô, o carro da frente desacelera, para desgosto da motorista. Minha última oportunidade de engatar quarta, pensa. Está em terreno mais que familiar, todo dia, toda noite, sempre ali. O retorno, o cruzamento. O semáfaro fecha. Ela suspira, observando a padaria, a locadora, a ladeira, o prédio e pensa no jantar. Verde. Não há tempo de ver o caminhão que passa no vermelho.



[i] “receio que tudo isso sejam contos” (Cícero)