quarta-feira, fevereiro 23, 2005

Sebastian




A família não se reunia há muito tempo. Os filhos cresceram e sairam de casa. O pai morrera dois anos antes. Na casa moravam a mãe e Sebastian, um gato persa que completara dezesseis anos. A empregada aparecia quatro vezes por semana. Os filhos de vez em quando. O mais velho, Rodrigo, estava com vinte e oito anos. O mais novo, Rafael, vinte e cinco. Era domingo. Joana, a mãe, preparara uma refeição enorme. Pouco antes do almoço, Rodrigo chegou com a esposa e um bebê. Sebastian sabia, instintivamente, que mais pessoas viriam. Não sabia porque e não se interessava. Fechou os olhos e voltou a dormir.

Nos últimos anos perdera a vitalidade e passava a maior parte do tempo numa almofada no sofá. Sentia falta do vigor juvenil, de correr pela casa, brincar com borboletas, mas só pensar nessas coisas já o cansava. Sua visão já não era tão boa quanto antes porém, conhecia cada pedaço da casa. A audição, no entanto, continuava aguçada. Assim, quando a campainha tocou, Sebastian já ouvira passos e vozes na calçada. Às vezes, quando não queria dormir, observava o movimento da rua. Pessoas indo e vindo, pessoas que ele não conhecia, outras que já se acostumara. Um velhinho lhe interessava particularmente. Ele passava sempre no mesmo horário, pela manhã, com sua bengala, terno e chapéu. Naquela manhã de domingo, o velho não aparecera.

As novas visitas consistiam em Rafael e um moço. O garoto, humano preferido de Sebastian, atravessou a sala com passos ágeis e sentou-se ao seu lado. Sua mão acariciou-lhe a cabeça enquanto falava. Sebastian não entendia as palavras exatas, mas gostava da voz e tom de Rafael. Notou apenas que ele estava mais melancólico que o normal. Tinha a capacidade de perceber o estado de espírito das pessoas apenas pela voz. O gato ronronou como para dizer que estava grato pela visita e que tudo ficaria bem. Não importa o que o mundo coloque em nossa vida, somos senhores de nós mesmos, pensou Sebastian.

O moço que o acompanhava aproximou-se devagar e segurou o outro braço de Rafael de forma carinhosa. Sebastian percebeu que Rafael chorava. Levantou-se e subiu no colo do jovem, como fazia toda vez que este estava triste. Lambeu-lhe a mão e silenciosamente enrolou-se sobre as pernas dele. Era muito comum, antigamente, que Rafael brigasse com o pai. Os dois gritavam pela casa, o garoto subia para o quarto e se jogava na cama. Ele nunca batia a porta. Era como se esperasse que o gato fosse consolá-lo. E Sebastian o fazia. Entrava com seu passo leve, subia na cama e aconchegava-se ao lado do menino. Isso aconteceu por anos. A criança se tornou adolescente, jovem e, finalmente, um homem. Porém, nunca deixou de brigar com o pai. Sebastian suspeitava que o pai desaprovava algo no filho.

O jovem acompanhante de Rafael sorriu e o gato percebeu que, quando morresse, alguém cuidaria de seu menino. Com isso, ele levantou-se e voltou para a almofada. Agora, a família toda estava na sala, a mãe, os filhos e uma terceira geração. Sebastian não sabia o nome do bebê, mas confiava que nascera na melhor família possivel. A campainha tocou novamente. Dessa vez, uma prima dos garotos chegara. Devia ser uma ocasião muito especial, até a moça viera. Era bom ver todos reunidos. O gato sentiu falta do pai. Ele podia ter problemas com Rafael, mas sempre fôra um ótimo companheiro para o felino. Costumavam passar as noites na biblioteca em silêncio. O único ruído, além dos grilos do jardim, era a velha máquina de escrever. Um “tec, tec”constante e acalentador. Muitas vezes, após a morte do pai, Sebastian imaginava ouvir aquele som e dormia na certeza de que o pai estava alí.

Todas aquelas pessoas reunidas traziam boas lembranças à Sebastian. Quando os meninos ainda eram meninos, o gato pouco mais que isso, o pai vivo e saudável, a mãe sempre atarefada e a prima estridente, passavam as noites de inverno na frente da lareira. O pai sentava-se na poltrona, os garotos e a prima no chão, a mãe e o gato no sofá. Um jogo qual quer era colocado no tapete e a família ria e gritava noite adentro. No verão, eles costumavam brincar na piscina, no jardim. Essa era uma brincadeira que Sebastian nunca entendeu. Eles molhavam-se, pulavam na água e riam. O gato, desesperado, tentava alertar Rafael sobre a água. Miava quanto podia, mas o garoto não entendia e corria na direção da piscina. Nem para beber aquela água servia. Havia algo ruim, que Sebastian sentia pelo cheiro. Insetos caiam nela e morriam.

Hoje, eles não riam. Estavam contidos, às vezes sorriam levemente, mas sem risadas quentes de dias passados. Todos davam muita atenção ao felino, que acabou desistindo de dormir. Pensou que ao sentarem para comer, ele teria algum sossego. Se conhecia bem os humanos, quando reunidos para comer, ficavam mais de uma hora à mesa. Não apenas comiam, mas falavam muito. O almoço estava quase pronto. Sebastian sabia não só pelo cheiro, mas porque Joana levantou-se e começou a arrumar a mesa. Ela escolhia os lugares e desde a morte do marido, deixava uma lugar na cabeceira vazio. Sebastian espantou-se ao perceber que a empregada trouxera seu pote de ração para a sala de jantar. Colocara ao lado da cadeira da mãe. Era uma pasta de salmão. Nos últimos meses, o gato não conseguia mais comer a ração seca, então, substituiram por uma pasta. A de salmão era sua preferida e a mais rara. Realmente devia ser uma ocasião especial. Para ele, esse era um dos poucos prazeres que restara. Ele almoçou junto com a família, parecia falta de respeito não comer junto deles.

Depois da refeição, deitou-se no colo de Rafael. Rodrigo sentou-se ao lado e os dois ficaram acariciando-lhe a pelagem até que Sebastian caiu no sono. quando acordou, apenas Rafael estava na sala, com a mão pousada em seu dorso. Lágrimas escorriam pela face e o jovem o olhava de forma doce. Sebastian sentiu um profundo amor pelo garoto. Olharam-se por um tempo e o gato levantou-se. O barulho indicavam que todos estavam na cozinha, mas não se incomodou em procurá-los. Uma sensação de plenitude tomou seu corpo e a lembrança do velhinho que não passara essa manhã perpassou sua mente. Soltou um suspiro e ouviu atentamente. eram despedidas. Ele reconhecia pelo tom das vozes e movimentos. Um por um, todos vieram até o gato e lhe acariciaram. A família separaria-se mais uma vez, cada qual para o seu canto, sua vida, uma nova família.

Um som chamou-lhe a atenção. A máquina e seu “tec, tec”. Sebastian caminhou até a biblioteca. Aos de visão comum, estava vazia, mas para o gato, o pai encontrava-se lá, na cadeira de sempre. Ele sabia que o homem não perderia tal reunião. O felino subiu numa poltrona e aconchegou-se. Sua vida fôra boa. Perfeita, poderia dizer. Amava seus humanos, seus domínios, seu espírito. O som acalentador começou a dominá-lo. Pode ouvir os últimos adeus e deixou-se levar ao “tec, tec”.

(...)

Joana acordou triste. Não queria por Sebastian para “dormir”, mas o veterinário lhe dissera ser a saída digna. Logo, o gato ficaria tão doente, tão debilitado que morreria de tristeza. Isso era a última coisa que Joana queria. Sebastian fôra um companheiro fiel durante os melhores anos de sua vida. A ajudara a superar a dor da perda do marido, a partida dos filhos e os solavancos diários da vida. O almoço de domingo fôra perfeito. Todos puderam se despedir do gato. Rafael, apesar de abalado, parecia compreender que era melhor assim. De alguma forma, ver o felino uma última vez, passar a tarde com ele, servira como uma despedida honrada. e aquele gato devia ser honrado. Joana caminhou pela casa pensando nisso e procurando Sebastian. Resolveu tentar a biblioteca. Sabia que o gato gostava de dormir lá e estava certa. Ao aproximar-se, percebeu que o bichano já não respirava. Morrera durante a noite, mas morrera feliz.