domingo, maio 01, 2005

Névoa

Esse texto precisa de uma introdução. Sei que não publico nada novo há algum tempo. Contudo, esse texto também não é novo. Na verdade, é antigo. É mais um depoimento que um conto. É algo que preciso me livrar. Escrevi no começo de 2003 e muito mudou desde aquele tempo. Eu morei em Florianópolis, tive outra crise depressiva em 2004 e finalmente larguei a faculdade para mudar de curso. Talvez, um dia escreva o que houve depois. O que importa é exorcizar uma parte do que passei. A depressão voltou depois de 2003, passou novamente e me fez mudar. A conclusão ainda é a mesma, assim como o caminho. Eu enfrento essa tempestade de tempos em tempos. Já faz parte de mim. É uma doença, como diabetes. Deve ser tratada e não ignorada. E, acima de tudo, deve ser encarada pelo que ela é: terrível, perturbadora e involuntária. Eu a enfrento todos os dias. Não vou me render, por mais fraca que já estive. por mais que quisesse morrer.
Névoa

“…e é isso a que se chama um vivente: um pouco de carne oferecida à agressão do
real.”
A. C-Sponville

Não acontece de uma hora pra outra. É como um nevoeiro. Primeiro o dia torna-se cinza, o ar fica mais pesado. O horizonte é o primeiro a desaparecer. A névoa aproxima-se lentamente. Cobre as casas, as matas, você. No começo, acreditei que passaria. Porém, um dia segue o outro e não conseguia enxergar além da neblina. Não era minha primeira depressão. Pude reconhecer os sinais, mas não quis acreditar. Aos dezesseis meu dia acinzentou pela primeira vez. Um ano. Todo perdido. Se me perguntar o que lembro, direi que quase nada além dos dias cinzas. A sensação é uma angústia constante, dilacerante e sem objeto. Com a angústia vem o medo e o desânimo. Não queria ir à escola, ou ao cinema, à balada, nem ao menos levantar da cama.

Daquela vez, não procurei ajuda. Parti numa viagem para o nordeste. No carro, procurávamos o Sol. Em Pernambuco, estado que me trouxe alegria no passado, só chuva. Minha mãe diz que só choveu um dia. Foi o único que vi. Eu lia o Werther. Não é a melhor leitura para um deprimido. Contudo a identificação é enorme. Não tanto com o personagem, mas o espaço que reflete seus sentimentos. Descobri que vemos o mundo através do nosso humor. Se a linguagem faz o mundo e está em nossa mente, nosso mundo pode tornar-se escuro. Recuperei-me sozinha. Foi penoso e lento. Mais lento que a chegada da doença. Porque é uma doença.

Dessa vez foi pior. Achei que tinha me livrado do causador dos males. Rompera com meu pai logo após completar dezoito anos. Meu primeiro ano de faculdade foi maravilhoso. Minha vida estava nos trilhos. Então descarrilhou. O mais estranho foi perceber. Logo nos primeiros sintomas, desconfiei. Quando estava sozinha, uma angústia tomava conta. Não sabia o que queria, o que fazer ou mesmo como parar de pensar. E como eu queria ser capaz de parar. Minha mente ficava intensa, pesada e muito cansada. Tentei ignorar. Meu maior medo era voltar para as brumas da depressão. Porém, assim como não podemos impedir uma tempestade, eu não pude evitar o que estava por vir.

As aulas na faculdade recomeçaram e eu não conseguia assisti-las. Toda manhã, quando acordava, me sentia exausta. Incapaz de levantar da cama. Em menos de um mês me rendi. Procurei minha mãe aos prantos. Estava aturdida, desesperada. Por que aquilo voltara? Até hoje não sei. Acho que faz parte do que sou. Diz um autor que algumas pessoas são deprimidas durante toda a vida. Apenas estão ou não em crise. Eu sou assim.

Procurei ajuda. Um profissional me passou um antidepressivo e análise. O remédio ajudou, mas não impediu o pior. Num domingo, meus amigos me convidaram para almoçar num japonês. Enquanto dirigia para o restaurante, estava nervosa. Lá, uma dessas discussões bestas começou. Uma garota reclamava a falta de atenção que prestavam nela, outro ficou bravo com a cobrança e, em pouco tempo, vozes alteradas argumentavam sobre a mesa. Minha cabeça começou a girar. Um choro e um grito entalados na minha garganta. Eu falei a meia voz:
- Chega, por favor. Não posso agüentar, não tenho estrutura emocional para isso. Parem, eu imploro.
O sussurro se transformou num pranto compulsivo. O meu amigo a direita me abraçou e me deixei chorar por vários minutos. A mesa estava silenciosa, ninguém dizia nada ou mesmo respirava de forma sonora. Estavam assustados, aturdidos, com dó ou preocupados. Sempre fui sensata. A razão da turma e o muro das lamentações. Minha casa estava sempre aberta para desabafos. Porém, eu nunca tinha estado tão vulnerável. Depois não lembro direito. Na segunda-feira acordei para a faculdade. Sentia-me abatida, cansada. Entrei no carro respirando mal. Na avenida, minha visão desapareceu. Enxergava tudo branco. Já não conseguia respirar e uma náusea terrível se manifestou.
O medo naquele momento é indescritível. Encostei o carro e tentei me controlar. Contudo, só conseguia pensar uma coisa: “preciso voltar pra casa”. Foi o que fiz. Arrasada, fui dormir. Acordei a noite. Tentei entender o que tinha acontecido. Era um ataque de pânico. Mais uma peça da depressão.

Não pude acreditar. Desafiando meu medo, tentei sair de casa no dia seguinte. Ao colocar o pé no hall, fiquei branca. Mesmo assim continuei. Minha mãe me pedira para ir ao supermercado com ela. Quando chegamos lá, ficar em pé exigia toda minha concentração. Num determinado momento, ela se afastou para pegar algo. Nesse lapso, notei onde estava e a quantidade de gente a minha volta. Não pude suportar. Encolhi-me atrás do carrinho e fixei os olhos no chão. O medo dominara minha mente e manifestava-se de forma física. Meu corpo não me obedecia, apenas implorava em voltar.
Toda manhã ao acordar, eu dizia a mim mesma: vou conseguir sair. Não adiantou. Os dias passavam e eu me sentia mal apenas ao pensar em sair. Na análise, a notícia era simples. Eu não estava com síndrome de pânico, apenas ataques ocasionais. Minha depressão tentava se manifestar de todas as formas possíveis. Disse o médico que em poucos dias eu conseguiria sair. Não foram poucos, talvez tenham sido, mas para mim, pareceu uma eternidade. Trancada, com medo, muito medo. Minha família tentava ajudar. Tentava me alcançar, eu queria morrer. Numa noite, meu padrasto me convidou para ir ao cinema. Sessão da meia noite, ingresso comprado pela internet, tudo para evitar pessoas. Eu tomei coragem, fui. Estava com minha mãe, meu padrasto, pessoas com quem me sentia segura. Por isso, quando a sessão anterior saiu, em bando, na minha direção, não pensei. Escondi-me atrás do meu padrasto, encolhida, olhando para o chão. O filme? Não sei qual era, não lembro. A única coisa impressa na minha memória é o desespero de estar entre tantas pessoas.

Sei que melhorei. Aos poucos, depois de um mês ou mais, pude sair sozinha, para lugares não muito agitados. Só que isso me fez tomar uma decisão. Essa foi a parte mais difícil da depressão. O momento em que ela se colocou entre mim e meu sonho. Não podia freqüentar a faculdade. Tentava, me torturava, me culpava. Culpa! Se meu pai fez algo comigo, foi me ensinar a sentir culpa, por tudo. A depressão me forçou a reavaliar minha vida, minhas prioridades. Eu devia ser minha prioridade e naquele momento, eu estava doente. Admiti. Tranquei a faculdade. Estava oficialmente inútil. Só que não conseguia ver meus dias, minhas noites. Dormia muito, ficava o resto do tempo sonolenta e me torturando. Pensamentos ruins. Não conseguia assistir televisão, prestar atenção em filmes, ler meus livros ou escrever.
Abril, maio, junho assim. Sem memória, sem ação, sem ninguém. Nesse meio tempo, em junho, na verdade, minha melhor amiga voltou dos EUA. Tentei melhorar por ela. Coloquei-me de pé. Ela pedira aulas para o vestibular. Organizei meu tempo. Enquanto ensinava não era eu mesma. Encarnei um papel. Tornei-me uma professora dura, exigente, incansável. Fazia isso por ela. Um mês dando aulas. Só me lembro disso, dos momentos em que estava naquela sala falando sobre reações químicas, livros, História. No final de julho me levei a acreditar que estava melhor. Que já era capaz de me reconstruir.
Ledo engano. Meus amigos me convidaram para passar quatro dias em Itatiaia. Caminhar, visitar cachoeiras, me distrair. Fui. No primeiro dia parecia tudo bem, estava sob controle. Fiz trilhas enormes no meio de uma mata densa e sombria. Não me lembrava de Itatiaia ser tão sombria. No segundo dia fomos para Mauá. Lugar pitoresco. Comecei a sentir o isolamento, a angústia claustrofóbica. Naquela noite entrei em crise. Chorava convulsivamente, sentia dores no corpo, na mente. Tentei fazê-las passar com remédios. Tomei alguns analgésicos, deixei-me dormente, insensível. Era o aviso. No dia seguinte peguei um ônibus de volta para São Paulo. Não estava recuperada, longe disso. Sei que fiquei meses nesse estado. Não saia de casa, quando saia tinha medo de multidões, da rua, de tudo. Perdi outro semestre na faculdade. No final do ano saí do antidepressivo, mas não era mais a mesma. Nunca mais voltei a ser a mesma pessoa. Aprendi o que é dor e medo numa intensidade desumana. No ano seguinte comecei a juntar os cacos. Alguns nunca voltaram, nunca se encaixaram. Outros escolhi jogar fora. O que sobrou eu ainda não conheço.