
Império das luzes
Ela sai da aula. Sermões do século dezessete que ensinam hoje. Ainda com antíteses e barrocidades na mente, caminha para o carro. O celular toca.
– Alô! Oi Sá!
...
– Chego em casa em vinte minutos.
...
–Tá. Tchau.
O estacionamento lotado, bolsão do lago. Entre tantos carros, o dela é fácil de achar. Olha em volta, atenta. A violência da cidade chegou à universidade. Adora dirigir e, de todos os lugares, a universidade é seu preferido. Algumas vezes pega o carro e roda pelas ruas, apenas para arejar a cabeça. Sair da aula, à noite, e voltar para casa é terapia. A sua volta, diversos prédios, bem esparsos, arborizados. Até a saída do bolsão, sob a noite negra, na rua mal iluminada, ela acende um cigarro.
– Boa noite – diz o vigia.
Logo, ela está numa das grandes avenidas do campus. Alunos de todas as idades aguardam o ônibus. Ela engata a terceira. Na rotatória vazia não há necessidade de parar. Avenida principal. Quarta. Apenas o rádio e o som do vento. Grandes árvores verdejantemente negras sobre a rua. Ela começa a pensar na perfeição da noite. A saída da universidade se aproxima. O prédio da Fuvest, nem dentro, nem fora da USP. Agora, ela está fora, mas uma parte dela sempre permanece.
Pink Floyd no rádio. Parada no sinal, um menino chega a janela.
– Não tenho nada, hoje. – a resposta automática.
– Pra moça bonita vou fazer o truque mesmo assim.
Com um cordão seguro pelas duas mãos, ele faz um nó, sem soltar as pontas. Não deve ser difícil, ela pensa. Pior é ficar toda noite num farol. Verde. Ela se despede.
– Amanhã te dou algo. – ela pretende cumprir a promessa.
A essa hora, na cidade, pode-se engatar marchas raras. Terceira, quarta. Velocidade na paralela. Sobre a ponte, carros e luzes. Não são estrelas. Aqui, são ilusões tiradas de um filme futurista. Ela entra a direita. Não precisa. Provavelmente, só a faz perder tempo. Porém, gosta das grandes sombras de árvores sobreviventes. Um bairro escuro, de casas cheias de estilos, sem estilo. Não, não é o noturno de Belo Horizonte, mas é a cidade arlequinal. A literatura continua em sua alma. Ela pensa em tudo que estudou. Hoje, Vieira, amanhã, latim. Haec metuo ne sint somnia[i]. Na Pedroso, tantas sombras e silêncio. Contudo, as luzes invadem cada canto e prédios pseudomodernos surgem a sua frente.
Na ciclovia, um solitário jogging. A avenida nova, velho projeto. Não é por lá que vai. Seu caminho começa na biblioteca, passa pela livraria afrancesada e está na Inácio. Rua das baladas, qualquer dia da semana, está sempre aberta. Jazz, samba, rock, galinha frita. Se a vida é uma festa, é irônico que a rua dos bares termine no cemitério.
Quase em casa, pensa enquanto acompanha o muro branco. Última grande avenida. Sumaré. Nome indígena, córrego aterrado. Orquídea asfaltada. Essa ciclovia está deserta. Urbanos ao extremo, exercícios entre ruas. Sob o metrô, o carro da frente desacelera, para desgosto da motorista. Minha última oportunidade de engatar quarta, pensa. Está em terreno mais que familiar, todo dia, toda noite, sempre ali. O retorno, o cruzamento. O semáfaro fecha. Ela suspira, observando a padaria, a locadora, a ladeira, o prédio e pensa no jantar. Verde. Não há tempo de ver o caminhão que passa no vermelho.