quarta-feira, junho 07, 2006

Chuva

Esse conto fez algum sucesso com os que já leram. Não sei explicar o motivo. A idéia surgiu num sonho que tive. Sou meio doida, meus sonhos costumam ter enredo. Vai saber?

Chuva

– O que foi, anjo?

– A chuva. Não estou acostumada. – respondeu a moça de olhos claros fechando o casaco. O homem velho ao seu lado olhou ao redor. O parque estava quase vazio. Uma ou outra pessoa passava correndo. As árvores balançavam com o vento e a chuva fazia com que a paisagem se fechasse sobre os dois.

– Ficar sobre as nuvens nos faz esquecer o que ocorre aqui embaixo. Por que quis vir?

– Achei que poderia ser útil aqui. Agora, não sei o que posso fazer.

– O tempo dos anjos passou. Acompanho a humanidade tempo demais. – completou num sussurro, o velho.

– Mas eles parecem precisar mais do que nunca.

– Sim, precisam. – o velho abriu um guarda-chuva e começou a andar. – Vê aquela mulher? – indicou. Num banco, sozinha, uma jovem de cabelos negros olhava em volta.

– É ela que devo acompanhar? – perguntou a jovem anjo.

– Sim. Ariel, não deixe que ela te veja. Vou partir. Estarei guiando você. Não se apegue.

O velho desaparece. Ariel olha a jovem. Não parece triste ou feliz. Um olhar intrigado da moça percorre o parque. A chuva piora, mas ela não se move. Ariel senta-se ao lado da jovem. Ela sabe seu nome: Juliana.

Juliana olha o parque desolado. Pensa como mesmo sob chuva, parece mágico. Ela tenta não pensar no que deve fazer ou em onde deveria estar. Será que sentirão sua falta? Será melhor assim, senão teria que chorar ou parecer triste. Ela não se sente triste, quase não sente. Ela se pergunta o que ainda a prende ali. Uma situação tão diferente.

Ariel olha confusa para Juliana. Sabe que uma hora ou outra terá que aparecer, mas por que Samael a deixou ali? Uma voz, a voz do anjo, ressoa em sua mente.

– Porque você deve aprender. Olhe para essa moça. Teve uma vida comum para humanos. Mentiu, traiu, perdeu-se. Estou nesse trabalho desde o princípio dos tempos. A alma humana não nos interessa. Na verdade, pouco do que eles fazem nos interessa. São ordens e, sinceramente, eles estão a própria sorte há mais tempo que imaginam. Isso é tudo que fazemos agora. Não há motivo para mais. Sente-se ao lado dela, a acompanhe. O que acha que pode fazer pela humanidade? Acabar com as guerras, com a fome? Para quê? E não é possível, nem eles querem.

– É claro que querem. Só estão perdidos, desgarrados.

– Mesmo? Veja o quanto essa aí se importa. Só Ele tem esse poder e onde está?

– Não sei.

– Ninguém sabe, no céu ou no inferno. Olhe a mente dela.

Ariel faz o que o anjo disse. Juliana passou pela vida. Sentiu dó de quem morreu de fome, mas acostumou-se. Sentiu desprezo pelas guerras, mas não eram com ela. Amou, mas isso também se tornou um nada. Sua alma, sua mente quase como um buraco negro, nada sobrevive.

– Mas ela não é má. – exclama quase numa súplica a anjo.

– Não, é humana. E humanos perdem-se. Não de Deus que este nem nós sabemos. Eles perdem-se deles mesmos. Ela manifestou-se, votou, fez doações. Mas fez por que se importava e queria fazer diferença, ou fez por desencargo de consciência?

– Não sei. Não consigo ver. – responde Ariel num quase choro. – Como pode ser tão amargo? Não são eles os preferidos?

– São? Não é amargura, é conhecimento. Você não vê porque ela mesma não sabe. Eles não sabem o que os faz bons ou maus. Eles não sabem porque estão aqui e não sabem quem são. E nós também não, não suponha coisas. Apenas olhe. Ela está triste?

– Não. Ela não sente nada. É como se não existisse.

– Mas ela não existe mais, não é?

– Mas é como se nunca tivesse existido. As pessoas no funeral choram, mas estarão bem. É como se elas também não existissem.

– Sim, não há diferença. Nunca houve, na história ou na morte. É hora de levá-la.

– Não, podemos ensiná-los.

– A quê? Existir? Diga-me Ariel, você veio para ajudar ou por tédio? Você faz diferença? Você existe?

Ariel levanta-se. Não vai levá-la. Samael aparece na sua frente.

– Vá chorar anjo e volte quando se conformar.

Juliana pensa se isso é a morte. Esperar num banco sob a chuva. Qual a diferença?

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