sexta-feira, agosto 27, 2004

A Casa na Montanha


Meteora
Posted by Hello

Não me lembro mais dela todos os dias. Sua imagem está desaparecendo na minha mente. Por isso lhe escrevo, meu irmão. Não apenas para lembrar-me, mas para te lembrar porque estamos assim. A vida toma caminhos novos e, agora, tudo aquilo que passamos parece irreal. Sinto sua falta. Faz quase vinte e cinco anos que não nos falamos. Com a velhice se aproximando, não quero perder você também. Estamos maduros. Acho que aprendemos a esquecer essas brigas, não? Sofia morreu há dois meses. Ela já estava doente há algum tempo. Nos últimos dias me perguntou se eu me arrependera. Não, não me arrependi. Sei que abri mão de você, mas foram 25 anos de felicidade. Queria tanto que aceitasse.

Aquela casa ainda aparece nos meus sonhos. Lembra do dia que chegamos. Tão felizes. Nós esperamos o ano inteiro por aquelas férias merecidas. Um grupo de amigos, uma bela fazenda e a casa-grande no alto da montanha. Encontrei o Carlos outro dia. Continua alegre e irresponsável, como se ainda tivesse 20 e poucos anos. Naquele primeiro dia tudo estava perfeito. Seis amigos reunidos depois de muito trabalho. Apenas o Douglas não chegara. Por que, mesmo, que ele só viria no dia seguinte? Não me lembro. A lareira crepitava e nós cantamos a noite toda. O Marcos, sempre atirado, provocando a Paula com aquele papo de “você é a mulher mais bela do mundo”. Nós não tínhamos visto Sofia, ainda. Essa sim era bela. Foi até seu último suspiro.

A primeira vez que a vimos... Deus, parecia que o tempo parara para assisti-la. Quando Douglas saiu do carro e disse que trouxera uma amiga, eu não esperava por isso. Os amigos dele nunca foram diferentes ou muito interessantes. Então, ela apareceu. Desculpe, acho que me perdi nas lembranças. Deve ser doloroso ler uma carta de reconciliação e ter de cutucar essa velha ferida. Contudo, se não falar, talvez você não entenda minha decisão. Se conseguir lembrar da pessoa que ela era, quem sabe me perdoe.

Ela nos cumprimentou normalmente. Pensei comigo, é apenas bonita. Foi ao resolver conhecer a fazenda, que vimos como era incrível. Qualquer outro teria dado uma volta e só. Ela corria, livre, pelo campo. E a árvore? Aquela árvore centenária, enorme. Simplesmente subiu e ficou balançando lá em cima. Parecia uma criança e, do nada, parou. Como se um pensamento metafísico ocorresse em sua mente. Olhava o horizonte com seus olhos verdes. Quando desceu, virou-se para nós e disse:

-Isso é o que sou.

Não entendi nada. O que ela queria dizer com isso. Que era infantil? Livre? Não, depois percebemos que era imprevisível e profunda. Capaz de fazer coisas malucas e emprestar significado para as coisas mais bobas. Você ficou embasbacado por ela desde o primeiro minuto. Como era mesmo que dizia? Que quando o amor nos atinge forte, tudo que podemos fazer é correr atrás. Foi o que você fez. Sempre puxando conversa e a acompanhando nos passeios. Exceto os à cavalo. Ainda tem medo de montar? Lembro quando éramos crianças e mamãe nos colocou para fazer equitação. No prineiro dia você estava mais excitado que eu. Uma pena aquele acidente. Não foi sua culpa. Assim, como não foi minha, eu e Sofia nos entendermos tão bem.

No dia seguinte choveu. Que tempestade! Para mim, dias assim temos de ler Asterix e esperar que o céu não caia sobre nossas cabeças. E quem diria que Sofia tinha um exemplar do pequeno gaulês na bagagem? Nós três conversamos por horas. Quando a chuva passou e todos saíram, nem notamos. Ficamos inseparáveis. Então, você me pediu para deixá-los a sós. Confidenciou que estava interessado nela. Como se eu não tivesse percebido. Você não é exatamente discreto quando apaixonado. Soube que se casou poucos anos depois. Ao contrário de mim, você sempre quis uma família grande, muitos filhos, almoço de domingo. Como vão seus filhos? De vez em quando mamãe me conta sobre o que acontece com vocês.

Eu juro que tentei atender seu pedido. Durante duas semanas, eu só me aproximava de você e Sofia com a turma toda. Os únicos momentos em que isso não ocorria eram nas cavalgadas. Além de mim, ninguém queria montar. Sei que acha que eu enchia a cabeça dela com coisas ruins sobre você. Mas nunca disse nada de mal, Thiago. Era cavalgadas normais. Ela estava sempre alegre, um bom-humor raro. Nos acostumamos a ir até o lago, contorná-lo e, na volta, parar sob a árvore. Falávamos de tudo. Gostaria de saber quando percebi que também me apaixonara? Um dia, acho que o sétimo ou oitavo, não sei direito, nos sentamos na sombra. Vocês todos estavam no lago. Podíamos ouvir a Paula gritar com o Marcos. De repente, Sofia me perguntou se eu sabia o que era amar. Respondi que o único amor que conhecia era o que tinha pela arte. Então, ela começou a descrever o que era o amor.

O surpreendente é que não era aquela avalanche de clichês que a maior parte das pessoas usa. Segundo ela, era algo mais complexo, que exigia não apenas paciência, mas estudo. Algo como o que eu sentia sobre minha arte. Você se interessa pela outra pessoa, gasta seu tempo conhecendo-a e ainda mais tempo tentando desenvolver um elo. Contudo, não é um desperdício. O resultado é uma obra que para o autor nunca está perfeita, sempre precisa de retoques, mudanças e revisões. Mas o importante é que existe, tomou forma. Eu disse que era o que sentia pelas minhas obras. E ela disse:

-Você ainda vai sentir isso por alguém.

Nesse momento corei. Olhei para o lago e sugeri que nos juntássemos aos outros. Quando chegamos, só faltou você pular. Uma alegria que transbordava. Isso me incomodou mais ainda. Sentei com o Carlos e o Douglas e tentei não pensar nisso. O palhaço do Carlos estava contando suas façanhas e rindo de si mesmo. Adorava isso nele. Ninguém tinha capacidade de rir de si como ele. Logo entrei na conversa e esqueci. Começamos a fazer apostas se a Paula ia ou não dormir com o Marcos até o fim da viagem. Se não me engano, você também entrou na aposta, depois.

Quando as conversas acalmaram, me separei do grupo. Precisava pensar. Só. Sentia uma confusão insolúvel. Eu amava Sofia. Sei que era cedo para a palavra amor e era surpreendente eu usá-la. Antes dela, meus relacionamentos não duravam um mês. Ficava de saco cheio rápido. Pense bem, não estou dizendo que a merecia mais, mas nunca tinha amado. Você, hora ou outra, estava apaixonado por alguém. Será que pode garantir que a amaria toda a vida, como eu fiz? Desculpe, é só uma forma de defesa. Tenho muito medo de que não queira me ver, que me odeie tanto. Preciso de você, Thiago. Perdi a pessoa que mais amava e sinto que essas palavras são tudo o que resta de minhas forças. Preciso colocar os problemas pra trás, me acertar com você. Quem sabe, assim, reaprendo a viver. Digo isso, pois desde aquela viagem, vivi numa espécie de sonho. Não eram perfeitos, mas os anos com ela eram sempre doces.

Não sei se percebeu, mas depois do dia da aposta, eu me afastei ainda mais. Comecei a andar com o Carlos e a Tina. Era uma boa distração. Contudo, não suficiente. A fazenda não era tão grande e estávamos em poucos. Na terceira semana, eu desisti. Então, aconteceu. Noite da pipoca. Quando o filme terminou quase todos tinham capotado. Excesso de tequila. Você me conhece, tenho resistência inumana à tequila. Bebi tanto ou mais que os outros e estava elétrica. Ninguém deu a mínima para o filme ou pra quando fui para a varanda. Sofia seguiu-me e sentou-se comigo na rede.

Não lembro as palavras, não foram muitas. Eu estava em êxtase. Meu coração batia tão forte que era ensurdecedor. Algo como “Tell-Tale Heart”, só que de felicidade. Nos beijávamos como se não pudéssemos respirar de outra forma. As roupas sendo jogadas displicentemente, meu corpo ansiando pelo dela. Quando acordei o céu estava azulando. Senti uma culpa terrível, ela percebeu. Eu disse que não poderia fazer isso com meu próprio irmão. Porém, ela disse que não faria diferença, não tinha se interessado por você. Não pude abrir mão dela. Nos mantemos em segredo por quase todo o resto da viagem.

O dia em que perdeu a aposta sobre o Marcos e a Paula, afinal eles trasaram e no ano seguinte casaram, você tomou coragem. Decidiu se declarar. Foi o dia em que nos encontrou sob a árvore, os cavalos pastando, a brisa agitava as folhas e raios de sol acariciavam a pele dela, assim como eu. Aquele dia você parou de falar comigo. Quis explicar, te convencer que não era intencional. Nunca esqueci seu olhar. Ainda tenho pesadelos com seus olhos me condenando, me odiando. Uma fúria que matou parte de mim. Por favor, repense, tente se lembrar como eu te amo. Não tenho mais motivos para viver. A minha outra parte morreu há dois meses. Me ressuscite. Como posso te pedir para me perdoar? Será que posso? Somos irmãos. Temos um passado anterior a Sofia. Agora nenhum de nós a tem. Contudo, você tem uma família. Deixe-me pelo menos conhecê-los. Depois, se quiser, eu sumo. Você nunca mais terá notícias de mim.

Espero que ao menos me responda. Nem que seja não.

Com Amor

Sara


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