quinta-feira, agosto 26, 2004

Retrato em P&B


evans girl in fulton street
Posted by Hello

Retrato em P & B

Bruna era considerada por todos uma garota bem comum. Era daquelas que, quando nos pedem a descrição, é tudo tão mediano que ela pode ser qualquer um e nosso ouvinte não consegue formar uma imagem. Por isso se começasse a descrevê-la fisicamente o leitor se sentiria incomodado e largaria o livro chamando-me de pouco criativo. Contudo peço um pouco de paciência de quem lê estas linhas. Simplesmente tente imaginar um rosto bem comum, num corpo bem comum, com uma personalidade pouco marcante. Coisas do tipo olhos castanhos, cabelos castanhos, estatura mediana e uma conversa que não acrescenta nada, porém não incomoda.

A vida de Bruna resumia-se entre a faculdade de jornalismo, sua casa e o bar, sempre o mesmo, no sábado. Os pais tinham proposto que não trabalhasse durante o curso pensando que assim poderia se destacar com notas melhores. Porém, suas notas nunca subiram e nem ela própria acreditava que algum dia deixaria de ser medíocre.

Durante 18 anos tinha vivido sem viver, sem notar nada no mundo que lhe provocasse alguma reação. Minto. Em algum ponto remoto de sua infância ela se lembrava de uma sensação. Sabia que tinha visto algo que há comovera e por isso optara pelo jornalismo. Ela estava procurando essa lembrança perdida, essa imagem que tinha lhe dado a fagulha de vida que a mantinha.

Numa manhã de setembro, na primeira manhã de setembro, ela acordou com um sentimento de que algo estava acontecendo. Tomou um café rápido e saiu para a faculdade. Quando se aproximou de seu carro percebeu que ele parecia ligeiramente desbotado, nada demais, apenas menos brilhante que o normal. Ela tinha ganhado de seus pais um gol laranja metálico, daqueles “mamãe não me perca na neblina”.

O dia correu normalmente. Assistiu suas aulas e voltou para casa. Durante a tarde foi à academia, voltando quase à noite, exausta. Releu suas anotações antes de dormir. Contudo, no dia seguinte, percebeu que não apenas seu carro estava mais desbotado como quase todas as cores brilhantes. Preocupada, fez uma anotação mental para marcar uma consulta no oftalmologista. O resto do dia diferenciou-se do anterior apenas nas matérias que estudou. No terceiro dia sentiu uma certa dificuldade em reconhecer as tonalidades de amarelo e azul. Durante a tarde foi ao médico. Não havia nada errado com seus olhos e o oftalmo ficou intrigado. Disse que se piorasse ela deveria voltar, mas provavelmente era algum tipo de estresse. Bruna não compreendeu como poderia ser, afinal a última coisa que sua vida era, era estressante. Na verdade considerava sua vida bem tediosa.

No entanto, no dia seguinte sua visão não parecia ter piorado. Não melhorara, mas isso poderia significar que voltaria ao normal. Esse pensamento soou estranho. Será que ela gostaria de voltar ao normal? Sua vida toda fôra normal. Não, ela queria enxergar como antes. Que bobagem pensar que uma deficiência visual faria sua vida diferente ou mais interessante.

Durante uma semana Bruna não sentiu nenhuma mudança, acostumou-se com imagens mais desbotadas e menos tonalidades. Depois de dez dias tinha esquecido de seu pequeno problema oftalmológico. Tinha outras preocupações agora. Nunca conseguia boas fotos para a aula e deveria entregar novas fotos no final da semana. Para piorar, fotos P&B, impossíveis em sua opinião. Reservou a tarde para fotografar e seria o que Deus quiser. Decidiu pelo centro velho de São Paulo. Sabia ser um lugar batido. Todos fotografavam ali. Porém, não tinha a intenção de se arriscar. Se não tinha competência para tirar fotos interessantes, procuraria um lugar que falasse por si. Caminhou e fotografou a tarde inteira. Num certo momento, já cansada, sentou-se nos degraus do Teatro Municipal. Um casal ao seu lado namorava. Suas mãos, seus beijos, todo gesto cheio de paixão. Atrás, um outro casal. Não estavam brigando. Apenas desejavam sorte um ao outro. Uma certa frieza no olhar. Bruna sentiu-se compelida a tirar a foto.

Depois de reveladas, sua professora as analisou. Todas as fotos estavam boas tecnicamente, mas vazias. Então, ela parou na foto dos casais. Um dez. Uma foto de tristes velhos fatos. Uma foto de álbum de retratos. Aquela foto em preto e branco contava como a cor da paixão perde seu brilho. Bruna percebeu que da mesma forma que perdera a capacidade de enxergar tonalidades fortes e cores vibrantes, aquele casal perdera suas cores. Sentiu que sua visão havia auxiliado. Seu problema era de alguma forma o seu diferencial.

O resto do semestre correu normalmente. Provas médias. Desempenhos comuns e nenhuma melhora, apenas um leve aumento na destonalização. Os médicos ainda não podiam explicar, mas diziam que “o quer que fosse” havia estabilizado. Ela não se importava. Podia levar sua vida de sempre. Contudo, algo, aquele algo do passado, estava voltando. Sentia que quase podia se lembrar do que a comovera. Isso a animava. Não vivia mais por uma fagulha. Havia uma chama. Uma necessidade incrível de descobrir. Ela sabia que esse algo a faria reaprender a olhar o mundo, mais do que sua visão prejudicada. Na verdade, sua visão nem estava tão prejudicada. Ora, ainda enxergava cores primárias e secundárias.

Quase no final do semestre, sua professora de fotografia explicou o trabalho final. Uma única foto P&B, com um tema: você. Porém, os alunos não poderiam tirar fotos de si mesmos. Teriam de achar algo com que se identificassem e que, numa foto, os representassem. Havia outro complicador. Essa foto teria de se relacionar a outra foto, de um profissional. Um tipo de releitura de uma foto antiga na qual o aluno se inserisse.

Para Bruna, aquele trabalho era complicado demais. Ela não sabia quem era, não entendia nada de si e não se identificava com nada. Até pensou em sentar sua mãe numa cadeira de balanço e tirar a foto de perfil. Mas seria uma mentira e a referência não seria uma foto. Resolveu, então, fazer uma espécie de “brainstorm” fotográfico. Comprou diversos rolos de filmes P&B e começou a fotografar tudo e todos.

Numa segunda-feira, andando na avenida Paulista, algo brilhou de repente. Um flash tão forte que por um momento tudo ficou branco. Aos poucos, sombras começaram a aparecer e objetos a se delinear. Sua visão voltou, só que sem cores. Ela estava enxergando em P&B. Sua doença, num instante, foi ao extremo e Bruna perdeu todas as cores. Nesses primeiros minutos o desespero foi tão grande que ela não percebeu que batera uma foto.

De lá, foi num táxi direto para o hospital. Uma semana de exames, muitos médicos e nenhuma explicação. Bruna não se conformava. Quando sua mãe chegou com as fotos reveladas, ela não quis olhar. Pediu que as deixasse na cabeceira da cama, depois veria como ficaram. As fotos ficaram dois dias ali. Quando ela finalmente as olhou, entendeu tudo. A última foto não tinha nada aparentemente importante. Era uma multidão, como as que vemos todos os dias, nos horários movimentados, atravessando a Paulista. Porém, havia uma espécie de buraco nessa massa. Um vácuo, um ponto no qual uma pessoa faltava. Um pessoa parada olhando para trás.

Bruna olhou para trás. Olhou para o seu passado e aquela sensação, aquela lembrança, era uma foto. Sua tia, já morta, tinha lhe mostrado uma foto de Evans, tirada em Nova Iorque, nos anos trinta. Uma moça olha para trás na multidão. Aquele não era mais um retrato em branco e preto para Bruna. E não a maltratava mais.





Posfácio

O leitor deve se perguntar: como foi a vida dela depois disso? E como posso ter inventado tão absurda doença? Pois respondo ao leitor: Bruna viveu coloridamente em preto e branco e... Bruna não existe.




Um comentário:

Anônimo disse...

Interessante são as coisas cinzas que não fazemos e reclamos dela. O memso vai para aqueles que não se percebem como história pura e viva. Fotografia não seria bem isso também?: Não sei, não me julgo com cacife para falar sobre isso. MAs POsso falar de seu conto: intrigante. Gostei
MEu nome é Caio sou amigo da katicia e também comento e vivo a vida urbana