quarta-feira, outubro 27, 2004

Aula


Sophie Boutellier



Prédio da Letras, USP. Os alunos entram na sala. Conforme se acomodam, notam a professora Vera sentada sobre a mesa, quieta. Atrás, na lousa, está escrito: Mrs. Dalloway, Virginia Woolf. São sete e meia da noite. A aula está para começar. Um grupo conversa baixinho no fundo. Alguém comenta um filme, outro diz que não é o mesmo livro, a garota questiona. A professora não se move. Os minutos passam, alguns alunos começam a ficar inquietos. Então, Vera levanta um dedo. Silêncio.

- Apenas uma pergunta. – começa Vera.- Tenho uma pergunta para vocês. Por que alguém se mata?

Um rumor percorre a sala. Todos avaliam o que poderia ser respondido. Uma timidez inicial. Alguns segundos de hesitação. Uma garota, na primeira fileira, vestida com uma saia longa e camisa fechada até o colarinho, arrisca:

- Covardia.

A professora a olha longamente. Parece avaliar o aspecto da moça.

- Resposta típica religiosa.

Um outro braço levanta. Um homem de óculos e aparencia severa.

- Desespero. Depressão.

- Resposta da psicanálise.

Uma garota bonitinha, com blusa cor de rosa:

- Amor não correspondido.

- Resposta romântica. Podemos ficar aqui a noite toda. Cada um terá uma idéia própria e nenhuma delas será certa ou errada. O suicídio é tão antigo quanto o homem e mais misterioso que Deus. Quem aqui nunca cogitou se matar é um imbecil. A vida é cansativa, difícil e repleta de doenças. Nunca é um único fator, apesar de existirem gatilhos. Virginia Woolf se matou. A mente romântica diz que foi por sua sensibilidade de escritora, o psicólogo que era bipolar e assim vai. A verdade é que pouco importa. É claro que sua personalidade influi no texto, mas o texto é um todo sem ela. Sobreviveu a sua morte. Eu, pessoalmente, me identifico com a escritora.

Uma pausa. A professora fecha os olhos. Alunos anotam as informações. A moça religiosa reclama, diz que não é imbecil. Vera abre os olhos.

- Alguns de vocês devem ter assistido o filme “As Horas”. Esse foi baseado num livro homônimo que utiliza Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf para amarrar suas protagonistas. Uma delas é a própria escritora. Nesse semestre utilizaremos o livro Mrs. Dalloway para discutir o romance de língua inglesa do começo do século XX.

- Professora, ela não foi o único escritor que se matou nessa época, não é?

- Não, não foi. Virginia Woolf colocou uma pedra no casaco e se afogou. Outros usaram balas, remédios, etc. Eu, se fosse cometer suicídio, daria um tiro no céu da boca. Mas, voltando a autora. Ela era uma mulher brilhante. Enquanto escrevia mantinha-se agíl, exaltada, quase feliz. Depois de terminar um livro, sua doença voltava. Dores de cabeça, vozes, cansaço. Penso na dor do sossego. Seu exílio forçado de Londres. Acho que ela compreendia a vida e deu tudo que queria ao mundo, mas esse não retribuiu. Não da forma correta para o caráter dela. Uma pessoa pode amar a vida e se matar. É isso que acho que aconteceu. Ao lerem seus livros percebemos uma visão bela e aguda do mundo. Suas construções de paisagens, sua liguagem intimista e assustadoramente próxima de como pensamos.

- Professora – interrompeu um garoto de camiseta colada e calça bem cortada – se ela amava a vida e podia transformá-la em algo tão incrível, por que se matou?

- Por que a vida, mesmo bela, cansa.

O olhar de Vera tornou-se vago. Parecia ter perdido-se dentro dos caminhos tortuosos e cheios de cores do pensamento e das letras. De súbito, sua atenção retornou.

- Quero que tentem não pensar no suicídio da autora ao lerem esse livro. Originalmente, deveria chamar-se “As Horas”, como no romance que originou o filme. Mrs. Dallaway relata um dia na vida desta. Um dia com todo o significado da vida desta. Conforme levantarmos aspectos técnicos de estilo, vocês escolherão um para seu ensaio final. Classe dispensada.

Os alunos guardam os cadernos, arrumam bolsas e mochilas, levantam falando da aula ou bobagens quaisquer e saem. Vera desce da mesa e começa a organizar suas coisas. Provavelmete nunca fez isso com tanto esmero. A sala está quase silenciosa, apenas algumas vozes, já no corredor, entram pela porta. Então, ela nota um aluno ao seu lado. Ele espera pacientemente que ela guarde umas folhas na pasta e sorri. A professora nota que ele nunca fala em aula, mas parece estar sempre com olhos brilhantes, absorvendo cada gota de informação.

- Desculpe professora, mas se você não quer que pensemos em suicídio enquanto lemos Mrs. Dalloway, por que falou sobre isso a aula toda?

Vera o encara. Percebe pela expressão do jovem que ele não quer ser impertinente, está apenas intrigado. Por um momento pergunta se ele percebeu, mas afasta a idéia. Ela solta um longo suspiro, sorri e responde:

- Vá pra casa. É tarde.

- Está bem. Até amanhã.

- Adeus.

O jovem aluno entra no prédio. Uma estranha agitação percorre os corredores. A FFLCH está sempre agitada, porém não daquela forma. Ele lembra do começo de Mrs. Dalloway. Será um carro da família real, brinca consigo mesmo. Se dirige para a sala 170. O ar está pesado, pessoas conversam baixinho nos corredores. Na frente da sala, uma multidão silenciosa. Ele pergunta:

- O que houve? A sala está trancada?

A garota de cabelos verdes aponta um cartaz. A USP oferece um memorial a falecida professora Vera Morales. A garota completa:

- Suicídio, ontem à noite. Um tiro na boca.




3 comentários:

Anônimo disse...

Nossa!!!!
O que dizer depois de ler um conto maravilhoso??? Requintes de roteiro, já pensou nisso?
Amei!!!
Passa lá no meu blog!!!
Beijos...
Diogenes Boca Aberta
www.debocaaberta.weblogger.com.br

Anônimo disse...

as vezes me pergunto pq perdi o interesse pela leitura se existem coisas tão interessantes e intrigantes para serem lidas como este seu conto... fantástico.
nos vemos no MU
Well

Anônimo disse...

Teu conto me deixou meio perplexo. Ainda vou digeri-lo, mas esse estranhamento inicial me agradou demais. Ficar como estou, um pouco passado com o que se leu, é bom. Ou pelo menos importante. As coisas belas cansam, talvez?
Também tenho um blog. O nome é referência à produção do Fred, mesmo (está lá no meu perfil...)... espero que leia alguma coisa minha e que goste também...
Augusto Cézar C.L.