sábado, outubro 09, 2004

Folhas Suspensas

Um passo, mais um, seguido de outro e mais outro... um passo rangido rachando o silêncio. No sono profundo e lúgubre da madrugada, um passo saindo de uma tábua solta do assoalho. A lua projeta uma sombra, luz branca sobre o caminhar. Com um impulso o silêncio é quebrado. O Gato pulou na janela e cantou ao orvalho.

A casa não respondeu. O vento preencheu a solidão e aves noturnas medrosamente assustavam. Do parapeito via-se o fora de dentro e o interior de fora. Indefinido lugar numa vida definitivamente sozinha. Uma casa construída no ermo. A imagem do horizonte longínqüo, apenas com sombras de árvores. O azul quase negro da madrugada encontrando o solo. Um lugar parado no tempo, fora do tempo. O Gato já estava com 12 anos humanos e pouco contato tivera com estes. Apenas aquela casa secular lhe fizera companhia e agora perdia pedaços a cada dia. Era uma construção imponente. Apesar do efeito dos anos, ainda conservava uma aura de elegância. Como a casa de campo de um czar russo, majestoso porém decadente. A diferença é que a casa de um czar seria um patrimônio conservado. Esta era a casa mais importante nas redondezas de uma cidade fantasma. Tudo rangia, afugentava, quebrava sem ninguém, além do Gato, para ouvir. O felino deslizava por seus salões, quartos, escadas e parapeitos, todos os três andares do casarão feitos como que para ele. Assim, o que fazia era diferenciado pela estrela sobre sua cabeça. Sob o Sol lentamente pensava em folhas suspensas no ar, existindo como pássaros, só por alguns segundos. À noite, sob estrelas frias e distantes, passeava sentindo arrepios ao sopro gélido do vento sul .

Nem sempre fora sozinho. O único contato com pessoas, sua senhora dona, morrera há quatro estações. Mas, mesmo ela, tinha uma presença solisilenciosa. Seguia uma rotina sem sobressaltos ou visitas. Acordava com a aurora, passava a manhã cuidando do jardim e depois do almoço adormecia na rede da varanda. No final da tarde sentava-se para observar o pôr-do-sol e lia na sala principal à noite. No dia seguinte recomeçava. Só se dirigia ao Gato para um carinho ocasional. Não o alimentava. Ele sempre caçara sua comida. Viviam vidas paralelas preenchendo a solidão do outro com um silêncio solidário.

Numa tarde, aquela tarde que precede a noite de lua cheia, um som se fez ao vento. O rugido superava seus miados. Uma imagem distorcida no calor sobre o asfalto definia-se na estrada da mansão. Um ser enorme e barulhento vomitava pessoas no jardim, adormecia e..., horror! Aquelas pessoas afastavam-se do bicho metálico e entravam na velha casa. Agiam como donos, mudavam móveis de lugar, batiam lençóis e instalavam-se.

O Sol, solidário, aproximava-se do chão e espiava pela janela o Gato a chorar. As coisas da senhora dona mexidas. Sua casa mudada, infestada de cheiros estranhos. O Sol se escondeu. Há muito tempo não acendiam-se luzes à noite. As pessoas ficaram. Conversaram, comeram e fizeram planos de mudança. Agora que dormiam, o Gato no parapeito decidira-se. Sua dona partira e ele ficara enquanto a vida foi a mesma. Contudo aquelas pessoas não pareciam estar de passagem. Eram barulhentos jovens sem paz de espírito. Numa única noite já destruíram seu passado, numa única visita inseriram a casa nas engrenagens do tempo.

Olhou para dentro, a lembrança das folhas suspensas, da senhora lendo enquanto acariciava seu pêlo, da vida correndo num tempo estático. Levando as últimas lembranças o Gato partiu. Num salto que definiu sua vida.


Um comentário:

Bruno Domingues Machado disse...

Excelente. Muito bom. Destaco o bicho metálico vomitando pessoas; bem inventiva essa passagem.